26/06/2024
Boletim da CT
Número 228
26/06/2024
“DEVER FIDUCIÁRIO”
Na audição parlamentar da semana passada, que já aqui comentámos improvisadamente, ficaram por relevar algumas afirmações importantes dos dois membros do dueto “audicionado” (CA e CGI). Uma delas foi a afirmação do presidente Nicolau Santos, segundo a qual o dito CA teria o “dever fiduciário” de recorrer de sentenças favoráveis aos trabalhadores precários, para saber se as pessoas têm ou não têm direito a um contrato com a RTP.
Claro que o CA podia dar-se por esclarecido com decisões de primeira instância, mas obstina-se insensatamente em esgotar as instâncias de recurso. E, bem vistas as coisas, o presidente do CA não pode alegar que alguma lei ou algum estatuto lhe imponha o “dever fiduciário” de ser insensato. Mas, por falar em “deveres fiduciários”, há pelo menos um outro que o CA faria bem em cumprir.
O “dever fiduciário” da prestação de contas
Se o CA tem algum “dever fiduciário” é o de prestar contas do modo como gasta o dinheiro do contribuinte. Se o CA quer um aumento da Contribuição Audiovisual (CAV) para níveis europeus, e é natural que queira, deve prestar contas do destino que lhe é dado. Se o CA quer dignificar e prestigiar o serviço público de media – esse, sim, um “dever fiduciário” -, deve transmitir ao público, como contribuinte e como utente, a convicção de que aquilo que vê e ouve justifica aquilo que paga, de que o benefício auferido justifica o custo suportado.
Não basta, portanto, prestar um bom serviço público: é também preciso prestar contas sobre ele. E isso traduz-se numa palavrinha, que andamos sempre a repetir, e quase sempre em vão: transparência. E bem sabemos como ela nos é negada todos os dias – em centenas de páginas rasuradas do Relatório Único, em concursos públicos e internos, na escolha de concessionários a quem se atribuem alegadas práticas de cartel, enfim, num rol interminável de opacidades que causam suspeições, eventualmente infundadas, mas também inevitáveis entre os trabalhadores da RTP e entre o público contribuinte.
Quem quer ser sério, também deve parecê-lo, e só o conseguirá com uma transparente prestação de contas. Não há melhor defesa dos serviços públicos – deste, e de todos -, tal como, fiduciariamente, é devido por este CA ao público e ao acionista.
O “dever fiduciário” de bem gerir
Na discussão sobre os motivos para o descalabro de audiências da RTP 3, uma das explicações do presidente para o fenómeno era a fraca qualidade dos comentadores recrutados pelo canal, em comparação com os canais privados. Por outras palavras, disse o presidente que, ao pagar com amendoins, a RTP 3 não pode obter filet mignon.
Diga-se aliás, que o presidente tinha tão parca noção de como se gerem os recursos que cifrava os amendoins em 350 euros por prestação comentarial, logo corrigido pelos seus pares para 150. Mas, para ele, essa diferença nada alterava à substância do argumento nem ao que pretendia demonstrar.
F**a de qualquer modo o problema: se, por só poder pagar com amendoins, a RTP 3 está derrotada à partida na competição para brilhar na “ditadura do comentariado”, não seria preferível parar dois minutos para pensar, fora da caixa, que a informação do canal deveria renunciar à competição de tudólogos nessa pequena feira de vaidades, aliás cada vez mais abominada pelo público?
Pior do que pensávamos
Cometemos no último boletim um erro, por darmos ao CA um benefício da dúvida que não lhe era devido: é que nos escapou, na audição parlamentar, o momento em que o vogal Hugo Figueiredo respondera, muito discretamente, à perguntinha sobre o CA ter ou não ter apresentado à tutela algum pedido de exceção para integrar nos quadros da RTP trabalhadores urgentemente necessários. E, na resposta, ia a confissão de nunca se ter apresentado tal pedido.
Então para que nos falam sempre na dificuldade em obter a abertura de exceções junto do Ministério das Finanças, como explicação para a inexistência de uma verdadeira política de recursos humanos?
Eleger outro povo
Segundo Bertolt Brecht, um governo que está descontente com o comportamento do povo só tem de eleger outro povo. O discurso da presidente do CGI na audição parlamentar mostra que Leonor Beleza já passou à prática essa recomendação brechtiana.
Num contexto em que se acumulam os motivos de insatisfação dos trabalhadores da RTP e alguns se acham tão “infelizes” que já só esperam um plano de saídas voluntárias, a presidente do CGI veio citar o inquérito que dava a RTP como uma das empresas mais atrativas para nela se trabalhar. O inquérito, está bem de ver, foi feito junto de outro povo, e nenhum trabalhador da RTP foi ouvido para ele.
Num contexto de descalabro de audiências do canal de informação da RTP, a presidente do CGI veio citar um outro inquérito que considera a informação da RTP como “a mais fiável”. Admitindo que o seja, seria preciso perguntar por que motivo o público não o entende e lhe volta as costas. Mas também este inquérito deve ter sido feito junto de outro povo.
Enfim, a presidente do CGI louvou o facto de a RTP ter apoiado a produção audiovisual independente para além das obrigações que lhe impõe o Contrato de Concessão (10% da CAV). Já em tempos houve um primeiro-ministro que, possuído pela síndrome do bom aluno, se gabava de ter ido “além da troika” - e viu-se o resultado que deu. Neste caso, apoiar a produção externa para além do obrigatório significa investir na produção própria para aquém do necessário. Isso poderá fazer a felicidade de algumas produtoras independentes, mas certamente não melhora a situação do “povo” da RTP.
Privatizadores afiam as facas
Um artigo de Eduardo Cintra Torres (ECT) no Correio da Manhã (CM) do passado fim de semana deveria servir de alerta para quem, assistindo à audição parlamentar, tenha pensado que a RTP continuará indefinidamente a ser amparada por um bloco central de inércias e de interesses instalados. Privatizadores como ECT afiam as facas, à espera da oportunidade que adivinham próxima.
Onde era impossível não acertar, ECT acerta: o CGI dá corpo a um modelo de gestão blindado para que a degradação prossiga, PS e PSD contribuíram para uma audição fofinha e até o Chega se juntou à fofura. Acerta também na crítica à escolha do novo CA sem concurso, mas aí já preferindo ignorar as vozes críticas que se levantaram à esquerda (P*P e BE) e à direita (IL).
E, depois dos acertos óbvios e das omissões manhosas, ECT apresenta duas soluções possíveis para a RTP: incendiá-la ou deixá-la morrer serenamente. Como se vê, todo um rol de soluções construtivas
Combater a CT para combater a RTP
No mesmo artigo, diz ECT que o BE “controla” o Conselho de Redação de TV e a CT, aos quais incute “instintos censórios”. Falando apenas por nós, ignoramos onde foi buscar a ideia desses nossos “instintos”.
Mas, quanto a controlos partidários, podemos dizer que há mais de um ano que não há na CT nenhum militante bloquista e, quando houve, nunca foi veículo de qualquer controlo do BE. Esta CT, agora em fim de mandato, é um coletivo de pessoas com simpatias ou filiações partidárias diversas, que só têm em comum o empenhamento em defender os e as colegas da RTP. Sempre decidimos tudo entre nós e nunca em obediência a qualquer agenda partidária.
E a absurda teoria de ECT vê-se até desmentida por episódios como o recente comunicado do CR contra a CT: se ambos fossem controlados pelo mesmo partido, porque andaria um deles a assanhar-se contra o outro?
O que prova a prosa inserta no CM é que, para destruir a RTP, é preciso destruir primeiro as organizações representativas dos seus trabalhadores.
Estudo europeu sobre motivação no serviço público
A Comissão de Trabalhadores vai fazer chegar a todos, por email, um inquérito europeu sobre a motivação no serviço público de media. Em Portugal, o estudo está a cargo do investigador do ISCTE Miguel Crespo. Apelamos ao preenchimento do respetivo questionário, porque apesar da concordância do presidente do CA na sua divulgação, aparentemente o mesmo não chegou a todos os trabalhadores da RTP.
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