27/05/2024
Género: Conto |||| Título: Blackout
Autoria: VEN MM
27. Maio. 2024 | Done-se / Revista LiterArte
MINI PREFÁCIO
Eu gosto da chuva.
O céu grisalho,
a confortante melodia no tecto de zinco.
Gosto de assistir ao despenhar das gotas
pela janela embaciada
e ver a corrente dos rios acastanhados
escoar-se pela rua abaixo.
Gosto do som molhado que fazem os pneus
na estrada alcatroada.
Também gosto da melancolia destes dias,
em que fico em casa,
libando chás de erva cidreira,
e imaginando estórias mac4br4s como esta...
BLACKOUT
A folha de papel cheia de desenhos com caras contentes jaz abandonada na esteira. Ao lado, sentada de pernas cruzadas e as mãos juntas no regaço, Emília, menina de três anos, não tira os olhos da lâmpada. Assiste atentamente à cada fal3c3r e r3ssusc1tar da luz. É uma sucessão interminável de acende, apaga, acende, apaga, acende, apaga, acende, em curtíssimos intervalos.
E outra vez a luz se apaga. Demora. Arrasta-se o apagão por um longo instante e, no preto que engole de súbito a sala-cozinha, os dedos de Emília, manchados de tinta azul e vermelha, contorcem-se, irrequietos.
Apesar de estar sozinha na sala, sente a estranha sensação de que alguém, alguma coisa, oculta atrás dos sacos de milho ou dentro do tambor d’água, a espreita e a vigia. Mas não pode ser a avó Julieta, pois a avó está no quarto a dormir, desde manhã, quando a chuva começou, até agora, que já passa da hora do banho.
Emília corre o olhar apreensivo por toda a sua volta. Vê olhos e caras em tudo. Vê caras na selva do padrão floral da impenetrável cortina cerrada. Logo acima, vê olhos nos dois respiradores por onde penetra um pouco da luz crepuscular. Vê olhos nos dois grandes buracos negros na parede sem reboco. Leva as mãos ao pescoço. A gola; a gola alta da camisola a esg4na, como duas mãos gélidas no pescoço, intentas em m4tá-l4. E gritos; no silêncio desta tarde fria, ouve gritos. Não de gente. Gritos h0rrend0s de passarinhos nalgum ninho dalgum quintal. Depois, ouve barrulhos na rua, um cacofónico rugido, guinchos metálicos, e uma vontade esmagadora de chorar doma a menina. Tem as lágrimas já debruçadas no penhasco dos olhos, mas lembra-se do que a avó Julieta sempre diz: “Uma mulher forte como você tem que ser ‘strongui’. Não pode chorar de qualquer maneira.”
Então, Emília seca os olhos com a manga da camisola. Estica o braço até a folha dos desenhos, mas um ruído desvia-lhe a atenção para os sacos de milho. Desta vez, entretanto, não se assusta. Sacode o medo ao sopro do leque da lógica. São só aqueles ratos grandes que andam a roer tudo pela casa. Roem o milho, os cadernos, a sacola de pão, o próprio pão. Roem até os fios dos eletrodomésticos. Os carregadores e o televisor não escapam, mas o fio da ventoinha deve ser mil vezes mais saboroso. Ontem, vovó Julieta disse que não vai ser preciso comprar v3n3no de rato. Disse que basta deixar o fio da ventoinha sempre ligado à tomada para os gajos roerem, descascarem, roerem, descascarem, até el3tr0cut4r3m-se.
A escuridão da sala insiste. Emília esforça os olhos a contemplar os dois bonequinhos de palito que desenhou. Um deles é uma criança, ela, que está de mão dada à avó Julieta, cujo desenho é o mais caprichado dos dois, com borboletas vermelhas à volta, e um círculo de flores sobre a cabeça, como se fosse uma coroa. Enternecida com a imagem dos desenhos risonhos, na face de Emília resplandece um sorriso.
Até coisas imponderáveis começarem a acontecer no papel.
A face no desenho da avó negreja, enquanto, uma por uma, secas, como folhas m0rt4s, as borboletas caiem à volta dela. Nos olhos f**am duas covas pretas, por onde um verme s4ngr3nt0 escapa, rastejando pela face sorridente. E, embora murchas, as flores permanecem ali, sobre a cabeça da avó Julieta, como uma coroa.
Num ataque de pân1c0 e agonia, Emília fita o lençol que cobre a entrada do quarto. “Vovó.” choraminga.
Então, ouve, finalmente, uma voz familiar. O busto logo endireita-se-lhe. Atenta, respira fundo, aliviada. Não é a voz que ansiava ouvir, mas, depois de todo um dia em ‘cárcere chuvoso’, e com a avó possuída naquela estranha sonolência, é a primeira vez que a menina não se sente abandonada no cosmos.
Arrasta uma cadeira até à janela que dá para a rua. Sobe, espreita por uma fresta na cortina.
Embora a chuva tenha cessado há algumas horas, fora, o céu mantém-se coberto de nuvens pardas, esbranquiçadas à frouxa claridade do entardecer. Na areia molhada, surdem gumes de pedras, des3nt3rrad4s no escoar das águas pelo caminho abaixo. As janelas dos vizinhos estão escurecidas, exceto as da casa da mana Jazz, que ora vertem uma luz branca, ora escurecem.
Um sopro de vento abana a fronde do limoeiro defronte, sacode as abas da saia da tia Ana, do outro lado da rua. Está com um senhor que tem vestes cor de laranja, ambos em pé no portão da garagem dela. Enquanto conversam, o senhor aponta para lá e para cá e, depois, para cima. No alto do poste eléctrico, um outro senhor, que tem as mesmas vestes cor de laranja, parece uma papaia gigante, bem madura e doce.
O estômago de Emília murmura outra vez, vibra. Desde a noite da véspera que a menina não come nada. Hoje, vovó Julieta não cozinhou, não fez chá, nem foi comprar o pão. Quando a chuva começou, foi às pressas ao quarto com um balde na mão e dormiu, num sono tão quieto e profundo como o dos c4dáv3r3s. Nem o apedrejar das gotas no tecto de zinco a despertaram. Tudo o que a Emília meteu na boca hoje foram algumas migalhas catadas na sacola de pão e as sobras secas do fundo do açucareiro.
Decide ir outra vez tentar acordar a avó. Chega ao quarto, mas não entra. Afasta lentamente a cortina, mete apenas a cabeça no interior escuro. “Vovó!?” chama.
A luz do quarto acende.
A avó ainda dorme na mesma posição, desde manhã. Deitada de barriga no chão, sobre uma poça de água infiltrada. O balde que ela levava para cartar a chuva por debaixo do furo no tecto também está deitado no chão. O cesto de roupa suja, idem. Tem um rol de saias e blusas af0g4d4s na infiltração. Até a velha ventoinha, ao lado da mala, está deitada no chão. O fio, embora rebentado, continua ligado à tomada, com a ponta descascada submersa na poça de água.
A luz apaga.
“Vovó,” Emília chora e, num estilhaço de voz, diz: “Estou com fome eu.” Doí-lhe muito o estômago, como se um daqueles ratos daqui de casa estivesse lá dentro a arranhar e a roer para furar uma saída.
Soluçando, a menina insiste. “Vovó, acorda lá. Estás a dormir no chão, em cima da água porquê? Está molhado aí; vais f**ar custipada.”
Há um silencio fant4sm4górico na escuridão do quarto. As vozes da tia Ana e os senhores lá fora, abafadas pelo quarto sem janela, parecem sussurros vindos de uma dimensão esp1r1tu4l.
A luz acende.
Emília intenta entrar, mas hesita. Se a avó acorda e a flagra a pisar o chão molhado com os pés descalços, vai zangar-se muito com ela.
Permanece na entrada por alguns momentos, a cabeça encostada ao umbral e os dedos das mãos contorcendo-se. Choraminga.
Então, a ideia sobrevém-lhe de súbito. Vovó Julieta tem muita raiva dos ratos, porque andam a roer o milho da machamba dela. Sempre que vê um, a vontade que tem é de fulminá-lo a golpes do que quer que tenha ao alcance. “Ishi! Vovóó!” Emília diz, carregando a tom no maior teatro que a fome a permite encenar. “Estás a ver esse rato graaande aqui? Vai te morder pé, bem. Acorda lá”.
De novo, o silêncio.
Indignada com o fiasco do seu truque, desta vez, quando a luz apaga, Emília entra no quarto, descalça, à revelia do que lhe foi ensinado. Pois que, assim, no escuro, quando a avó acordar, não terá como ver que os pés estão descalços.
Aproxima-se dela, nos pés um rumor de passos molhados enquanto caminha sobre a água gelada. Quanto mais adentra o quarto, mais um pungente fedor pica-lhe as narinas. Sem dúvida, o truque da ventoinha apanhou algum rato.
Agacha-se ao lado da avó, sacode-a pelo braço. “Ih, vovó, você como estás fria!”
Apalpa os braços, as costas e a face da avó na escuridão, estranhando a secura e rigidez dela. Agora entende porquê dormiu o dia todo. Está doente. O corpo dela está muito gelado e duro. Quando Emília adoece, quem cuida dela é a avó, mas, hoje, terá de ser a Emília a dar os cuidados.
Segura no braço da avó. Puxa, arfa, mas não a move nem por um centímetro. Para, ofegante. Conclui que não vai conseguir carrega-la à cama sozinha. O corpo dela está duro demais, como a tábua de engomar. Deve ser por causa de frio. Cobri-la com uma manta talvez ajude.
Mal tira os pés do chão molhado, ao subir na cama, a luz acende. Na tomada, onde o fio rebentado da ventoinha está ligado, lampeja um pouco de faísca. Engatinha sobre a cama até à pilha de mantas dobradas e puxa a maior até ao limiar. O fio da ventoinha lampeja outra vez. Deitada de barriga no alto penhasco da cama, pende as pernas para o precipício, mas não chega ao chão. Escorrega de barriga mais um pouco. Está a um triz de tocar com os pés no piso molhado.
Mas detém-se ao estalar de uma rajada de risos lá fora. Não desce. Volta a subir na cama e vai espreitar por um buraco entre os blocos que fazem janela. Tio Jacinto, Marido da tia Ana, conversa e ri com aqueles dois senhores de roupa cor de laranja. Agora todas as janelas da vizinhança estão vivas com o esplendor das luzes. E não piscam. Como sempre, quando há apagões na zona, o tio Jacinto é quem liga para aqueles senhores e eles vêm prontamente ligar a energia.
Uma ideia muito melhor que cobrir a avó ocorre-lhe. Mas tem de agir rápido, porque aqueles senhores estão prestes a ir-se embora. Um deles já está dentro do carro, enquanto o outro amara o escadote vermelho na bagageira.
Com a permanente claridade do quarto, Emília descobre um caminho seco, intocado pela infiltração de água. Desce por ali a toda pressa. Quando afasta a ventoinha interposta a sua passagem, ouve o rugido de arranque do motor do carro. Correndo, salta o fio da ventoinha e, num lapso do passo, desequilibra-se. Porém, passa, sem pisar nem no fio, nem na água.
Chega tarde demais à rua. O carro já é uma formiga de faróis vermelhos lá no fundo da rua escurecida. Emília para neste deserto molhado, descalça sobre os gumes das pedras, o vento frio rapando-lhe as pernas e o rosto, e assiste a sua única esperança de ajudar a avó sumir no dobrar da esquina.
Vira-se. Olha para a casa delas. Vê nas janelas um par de olhos; vê na porta a boca de em m0nstr0 que engoliu a sua avó. Uma vaga de aflição atravessa-lhe o corpo, e as luzes das janelas à volta embaciam-se. Mas, de novo, se lembra. “Uma mulher forte como você tem que ser ‘strongui’…”.
“Dalcença.” Bate na porta da casa de tia Ana.
Quem abre é o tio Jacinto. “Olá, mana Emília,” diz ele, sorrindo, “como está?”
Atrás dele, sentada num sofá branco, Tia Ana estica o pescoço. “Estás bem, minha amiga?” pergunta. Depois, dramatiza a expressão do rosto, infantiliza a voz. “Entra, entra. Está frio aí fora.”
Tio Jacinto a upa e a senta no sofá branco. Na TV, que ocupa quase metade da parede branca, passa alguma novela em que, muitas pessoas vestidas de preto, com guarda-chuvas pretos sobre as cabeças, choram ante a uma s3pultur4. O rato na barriga de Emília desperta ao aroma gostoso vindo da cozinha.
“Já tem energia lá em casa, néh?” Tia Ana pergunta.
“Sim, já não está a fazer pisca-pisca.” Responde Emília, cabisbaixa. Depois, vira-se para o tio jacinto: “Tio Jacinto, tô a pedir ligar para aqueles tios ali para virem de novo.”
“Quais tios, mana?”
Os dedos de Emília contorcem-se. “Aqueles tios que vieram ligar energia.”
“Os tios da electricidade?
Tia Ana levanta, espreita pela cortina. “Mas já tem energia lá em casa também, minha amiga.”
Emília não tira os olhos do piso branco. Sente no peito alguma coisa, uma sensação sem cognato, como se algo dentro dela fosse explodir.
Tio jacinto agacha-se diante dela. “Então, é para quê? Diz lá tio. O que foi?”
A resposta jorra torrencial pela boca e pelos olhos. “Vovó foi buscar baldinho para cartar água, depois, me mandou f**ar na sala, depois entrou buraco em casa de chuva lá em cima, depois, vovó perguntou eu liguei ventoinha porquê, depois fez ‘gubu’ lá no quarto, depois vovó está dormir desde há muito tempo, desde de manhã no chão em cima da água, não está acordar, lhe chamei muito, cara dela com mãos estão DURO parece pão de antes de ontem, depois mãos dela com cara dela estão gelada também, tá doer minha barriga, eu estou com fome. Tio… tio, tô pedir chamar aqueles tios ali de liticidário para vir ligar vovó também para acordar.”
FIN
…
Done-se o mundo... Expressa-te!!
Como publicar os seus textos(?)? Encontre o nosso procedimento mais abaixo, num ‘post’ intitulado “COMO PUBLICAR POEMAS, CONTOS, CRÓNICAS E TESES FILOSÓFICAS NA ‘Done-se / Revista LiterArte’??”, de 10 de Abr