05/06/2024
Centenário de nascimento
Irba (Ivanete Rêgo Barros Alves)
As mães são notáveis, especiais, e ficam para sempre na memória de seus filhos. A história de cada uma delas representa a história de todas as mulheres que nos antecederam, e a quem devemos todas as nossas conquistas. Minha mãe nasceu há exatamente um século, em 5 de junho de 1924, e faleceu neste mesmo dia, há 16 anos, 27 dias antes do nascimento do meu primeiro neto.
A coincidência de datas de nascimento e morte de familiares, no intervalo de 3 dias antes e 3 dias depois da data do evento, era anotada por ela a cada novo acontecimento coincidente, o que ocorria com uma estranha frequência entre os membros da família. E ela própria não fugiu à regra – faleceu no dia em que nasceu. Deixou duas filhas, seis netos e doze bisnetos.
Única filha (tinha apenas um irmão) de pais católicos fervorosos, ela sofreu a forte influência dos costumes religiosos do início de século passado, presentes durante muito tempo na sociedade brasileira. A Semana da arte moderna (1922), realizada em São Paulo, inspirada no movimento modernista que teve início na Europa no início do século 20, apresentava uma proposta inovadora nas manifestações artísticas, e também influenciava os jovens sonhadores que viam nas novidades um grande atrativo.
Aos 19 anos, minha mãe escreveu uma peça de teatro – O sinal revelador, que foi encenada no cine-teatro Diogo Braga, em Vitória de Santo Antão, sua terra natal. Além de roteirista, ela também atuou no papel de uma jovem que cantava e tocava violão no grupo de ciganos. O seu interesse pela poesia, literatura e música se realizava na participação em movimentos culturais no Colégio das Damas da Instrução Cristã, onde estudava. Inicialmente, ela concluiu o Pedagógico, depois casou e teve duas filhas. Após a separação, dedicou-se com afinco ao ensino infantil e a escrever em prosa e verso para crianças. Anos depois, fez o curso de Pedagogia na FAFIRE, no Recife, onde trabalhou na Rede estadual de ensino até a aposentadoria.
Lembro quando ela ia dar aula na Escola Típica Rural Fazendinha, em Bezerros, seis léguas distante de casa, acompanhada de meu avô e das crianças que iam se integrando ao grupo ao longo do caminho, até chegar à escola – ela dava aulas as quatro séries que ficavam juntas na mesma sala. À tardinha o cortejo voltava, e ela e meu avô iam devolvendo as crianças às suas mães, pelo caminho. Durante o inverno, minha mãe montava um b***o puxado por meu avô, para atravessar a lama que se acumulava na estrada de barro vermelho, dificultando a caminhada a pé. Na parte da manhã, as aulas eram de linguagem, matemática, história e geografia; à tarde, de catecismo e trabalhos manuais.
Um domingo por semestre, o padre amigo da família ia ao grupo escolar para celebrar missa, primeira comunhão, batizar e casar os moradores da zona rural. O dia era de muita festa. Além das celebrações, havia uma exposição dos trabalhos manuais feitos pelos alunos durante o semestre. Minha avó, junto com algumas mães, preparavam o almoço, as sobremesas e os refrescos. Eram dias ansiosamente aguardados e inesquecíveis, onde eu podia brincar o dia inteiro com muitas crianças. Vale salientar que, como professora primária do município, o salário dela cobria, apenas, o ensino das matérias básicas. O conteúdo extracurricular era dado como trabalho voluntário, que também envolvia meus avós e algumas mães de alunos.
Minha mãe publicou dezoito livros nos gêneros poesia e infantojuvenil. Dedicou a vida à família, à pedagogia e à literatura. Participou ativamente de instituições literárias locais e nacionais, e foi presidente por dois mandatos da UBT – União Brasileira de Trovadores. Foi colunista do jornal A Gazeta de Felgueiras em Portugal.
Apesar das consequências da separação – na época, uma mulher separada era estigmatizada pela sociedade conservadora –, nunca a vi se lastimar nem falar mal dos que a fizeram sofrer. A sua generosidade permitiu que ela cuidasse de meu pai doente, até a morte dele. Era alegre, bem humorada, e tinha o dom de fazer amizades e preservá-las. A ela devo o que sou. Com ela aprendi a enfrentar situações adversas com lucidez e serenidade. Para ela, todo o meu amor e a minha gratidão eternos.
Salete Rêgo Barros