04/12/2024
Olympe, 10 anos depois.
Em 4 de dezembro de 2014, eu escrevi um texto no Facebook que foi lido por 45 mil pessoas. Era uma coisa assustadora de grande.
Foi esse o primeiro texto que chegou a ser lido por milhares de pessoas. Por causa dele, dei entrevista no Programa Encontro, na época com a Fatima Bernardes.
A partir daquele texto, as pessoas começaram a me chamar de escritor. E ele foi publicado no meu único livro até hoje, Rio em Shamas, pela Cia das Letras, que foi indicado ao Jabuti em 2017.
Esse texto se chamava: o dia em que fui no Olympe.
E ele narra, de maneira simples, a noite de um homem que completa 40 anos, e vai com sua esposa no jantar de aniversário, num dos mais importantes restaurantes do Rio de Janeiro, no bairro da Lagoa, zona caríssima da cidade.
Eu morava em Cascadura, nos fundos de uma galeria comercial.
A ideia foi da minha então companheira, com quem vivi 10 anos.
Durante o jantar, vi pessoas, pratos e coisas que nunca tinha visto até então, porque eu vinha de uma vida muito simples. Morei em favela, subúrbio, a vida, 10 anos atrás, era muito dura. Tudo que eu tinha cabia numa kombi.
Durante 2 horas eu entrei no mundo que, pra mim, era chiquérrimo. E eu chorava, porque com 40 anos, não sabia como me comportar ali. Eu disse que a pobreza fode a cabeça da pessoa. A gente sente que não merece viver as coisas.
Claude Troisgros era o chef e proprietário do restaurante.
Lembro como se fosse hoje, ele de um lado pro outro, atendendo clientes um a um na mesa, e coordenando a cozinha.
Claude sentou na mesa ao meu lado, e ele já era famoso naquela época. E quando ele falou comigo, eu perguntei a ele qual o jeito certo de comer aquela comida, toda chique.
E ele respondeu: Como você quiser. Come com as mõons.
Claude me deu o jantar de aniversário. De fato, fez diferença na minha vida, porque eu fui, mas ia f**ar duro no dia seguinte. Ele ainda deu uma garrafa de vinho, levou na cozinha. Ali vi pela primeira vez uma cozinha profissional.
Os fornos, as panelas penduradas. As ilhas de cozinha, os cozinheiros, o Batista.
Comi também o mousse de maracujá. Nunca mais comi um mousse como aquele.
Quatro anos depois, o Brasil fervia com o bolsonarismo. O Brasil estava pegando fogo nas ruas, e estávamos mergulhando num esgoto, do qual não saímos até hoje, e não tem esperança de sair.
Eu saí do Brasil, com a ajuda de amigos e pessoas.
Em Portugal, morando em Lisboa, a cantora Roberta Sá me escreveu, que queria me conhecer, e lá no show estava o Claude. Então eu abracei ele, já fora do país. E disse pra ele, porque tinha saído.
Agora, exatamente 10 anos depois, eu estou em Paris.
Já entrei em muitas cozinhas, já tive uma cozinha, já vi muito francês e chef francês, igual o Claude.
Nunca imaginei que, em 10 anos, sairia de Cascadura pra Paris.
Foram motivos um pouco diferentes que levam brasileiros a vir, mas eu descobri que muitas pessoas veem pra Paris por motivos politicos. Paris, e a França, acolhem escritores, políticos, ativistas, do mundo todo. Eu aqui sou apenas mais um deles.
A cidade da Dama de Ferro, a Torre Eiffel, me acolheu e deu garantia de vida. Devo isso aos franceses.
De fato, devo isso a eles.
E por Paris, já almocei, já jantei em bistrôs, restaurantes. E já lembrei do Claude muitas vezes. A comida francesa simples, caseira, de inverno. Não a comida cara, alta gastronomia. A cenoura, batata, o pato. Coisa que trabalhador come. Comida de trabalhador, que no Brasil é chique.
Já comi em muitos mais restaurantes árabes. E me lembro dos restaurantes e pensões na Uruguaiana, da Praça da Sé. Comida popular, o prato feito.
Já briguei porque o francês chama batata frita de almoço. Batata frita é LANCHE. LANCHE.
Uma coisa é lanche, outra coisa é almoço.
Botar um bife com batata frita, sem arroz, feijão, farofa e salada, tá faltando comida. Isso não sai do patamar de lanche.
A Batata de Marechal Hermes no Rio é vendida num S**O DE SUPERMERCADO, 3 kilo de batata com bacon, frango a passarinho. E É LANCHE.
Na França seria um banquete da pornografia.
E eles comem escargot. Amigo, não. Eu não boto minha boca em caramujo. Vamo preservar a amizade.
Então, 10 anos depois vi que a gente merece sim, por qualquer meio, viver a coisa que a vida nos dá. Não interessa a M***A que você precisou viver. Você merece sombra, champanhe, praia, lagosta, camarão, pizza, um balde de cerveja.
Descobri que não preciso chegar de cabeça baixa nos lugares.
Descobri que pessoas como o Claude são pessoas como eu e você. Ele, imigrante. Agora eu, também. Ele no meu país, eu no dele. A vida imigrante é dura. Ele trabalhou muito na cozinha. E cozinha é lugar duro.
Eu trabalho muito escrevendo. E escrita é lugar duro. Quase que pago com a vida por isso.
E aprendi que o mundo muda, como o mar com correntezas violentas, que não deixam a gente controlar nada. A gente acha que controla, mas não temos o controle. Nós apenas vamos.
O mar da História,
é agitado.
Eu tinha 40 anos, agora tenho 50.
O Brasil que eu conheci, não existe mais.
A casa onde morei, virou uma padaria.
O Olympe, fechou.
Eu, divorciei.
Tudo passou.
Muita dor, muito vazio. Muita coisa que eu prefiro não falar. E que não respondo, quando me pergunto. Mas a vida andou.
E dez anos depois, tenho pouca coisa nas mãos, mas me sinto em paz. Me sinto amado. Me sinto vivo.
Jantei em casa mesmo. Comi pouco, porque estou meio doente. E lembrei de pequenas coisas.
Me resta o silêncio, e a lembrança de tudo que foi bom na vida.
Não sei.
Eu acho que, no fim, a vida é uma mesa de jantar. Nós mudamos, o tempo muda, mas a mesa f**a lá. Como testemunha de tudo que fomos.
Hoje, sou escritor.
E tudo começou ali.
No Olympe.
Comam a vida do jeito que quiserem.
Comam com as mõons.