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27/12/2024
Daniel Bernardes – “City of Glass”
(Ed.Autor, 2024)
“Fantasmas sonoros de “City of Glass” (Paul Auster, 1985) saídos da pena de Daniel Bernardes a ganharam asas corais, jazzísticas e plenas de contemporaneidade.”
PREAMBULO
Álbum conceptual e multidisciplinar com forte impressão jazzística mas bem dentro do território da música de câmara, coral e contemporânea – da qual não me sinto habilitado para escrever e por isso inspirado no próprio conceito da elaboração desta obra, irei fazer breves apontamentos sobre a forma como senti por palavras a música que me foi generosamente dada a escutar pelo seu Autor:
I (“It Was a Wrong Number That Started It”)
Acordes assentes na premissa de um erro, tal qual um preambulo de investigação noir nos indicia…o que sairá deste enredo sonoro de teclas brancas e pretas a soarem em pontos de interrogação?
II (“New York Was the Nowhere He Had Built Around Himself”)
Um piano pleno de motivação inicial e inquietação logo de seguida, o qual rapidamente é impulsionado pelo Coro Ricercare (CR) que é talvez a mais bela marca de água desta obra situada entre os terrenos da música de câmara/coral/jazz/contemporânea num conceito que alia a obra escrita, o livro “City of Glass” publicado por Paul Auster em 1985 inaugurando a famosa “Trilogia de Nova York”, à linguagem musical de Daniel Bernardes (DB) numa banda sonora por ele imaginada criando assim o seu próprio “áudio-livro”, conceito tão em voga nos últimos tempos.
III (“God’s Language”)
Como de rompante surge “God’s Language”, aquela que para mim poderia ser considerada a “peça-single”, isto se esta obra se regesse pelos parâmetros do marketing musical vigente, o que não é o certamente o caso, pois a estética musical de DB está nos antípodas da música como fenómeno mercantilista, daí a minúcia dos seus trabalhos quase sempre autorais, multidisciplinares e com um conceito/substrato muito bem elaborado resultante de um longo processo de criação feito em lume brando.
Esta “linguagem de deus” poderá ser de facto canonizada como uma das mais belas peças de jazz elaborada recentemente em Portugal, música única onde a paisagem visual que ela evoca é tão ou mais importante do que o respetivo ambiente sonoro que nos envolve. A meio do tema a voz mágica de uma contralto do brilhante CR remete-nos para um estado de alma no limiar do paraíso, numa fronteira paradigmática: um ouvido no céu, outro na terra. O tutti final (Trio+Coro) impulsiona o tema para uma dimensão espiritual, mas realista: uma peça de arte superlativa. A adição do CR, composto por 30 elementos e dirigido por Pedro Teixeira, depois de ter colaborado na penúltima obra de DB - “Beethoven…Reminiscências" (2022) – imprime a este trabalho uma magnitude vocal deveras assinalável fazendo com que as camadas tímbricas humanas criem uma banda sonora ultra-realista.
IV (“City of Glass”)
Em “A Cidade de Vidro”, o piano de DB soa de facto a gelo…isto é… um som polar como se Nova York fosse a cidade mais fria do mundo. Para fazer o contraponto sonoro-sensitivo e retomar as sinergias mais quentes: as harmonias/ritmos do Trio complementadas pelos labirintos melódicos que o CR vai ajudando a trilhar, fazendo desses caminhos pontos de luz com estradas mais iluminadas. Entretanto espaço para o brilhantismo do Trio de jazz na sua essência mais clássica, numa química perfeita entre o “trio jazzista da Cidade de Vidro” o qual para além do pianista e compositor supramencionado DB, apresenta António Quintino (AQ) no contrabaixo e Joel Silva (JS) na bateria, podendo mimetizar com honra e classe o classicismo outrora imprimido por gigantes na mestria das teclas pretas e brancas a três, como Bill Evans ou Keith Jarrett, aqui num ambiente jazz plenamente europeu descendente direto da estética ECM Records. Final em crescendo que termina em tutti num brilhante apogeu, a recuperar motivos melódicos já experimentados anteriormente. A peça mais longa do álbum, contando com 7 minutos e 43 segundos.
V (“Hotel Harmony”)
Depois da magnitude de “City of Glass” este “hotel harmónico” (ou será antes um “AL com harmonia”?) permite-nos descansar um pouco através de um piano pausado, quase reflexivo e meditativo, numa sequência de acordes que vão acamando uma melodia noir…momento certo para este ouvinte e escrivã evocar uma obra de nome “Motion” (Clean Feed, 2010) de Bernardo Sassetti Trio – porventura (opinião meramente pessoal claro) o testamento maior do pianista português…e o porquê de evocar este título? Para além da “obra sassettiana” ter tido óbvia influência não só em DB mas em todos os pianistas jazz portugueses nascidos a partir dos anos 80/90 do século passado, há uma estética que vai para além da música, juntando outros prismas artísticos como o cinema, a fotografia, a literatura, entre outros, tal como sucede aqui em “City of Glass”, ou seja, a música como ponto de partida/convergência para outras filosofias artísticas e criativas. Regressando ao tema de toada lenta e melancólica, a harmonia vai ficando cada vez mais densa e com o aparecimento do CR soa a uma espécie de “resumo fúnebre” do escutado até então, um requiem num vidro tão fino quão bem temperado.
VI (“The Tower of Babel)
Atingindo o meridiano de “City of Glass” é da mais elementar justiça evocar o nome de Pedro Moreira (atual Presidente do Hotclube de Portugal - Página Oficial) no papel de Diretor Musical, responsável por montar as peças deste puzzle tão original como desafiante. Teria que ser um homem do jazz – saxofonista, compositor, maestro e arranjador - mas com um grau de sensibilidade musical extra a fazê-lo. Durante o tema volta a ser realçada a química que é gerada através da comunicação do piano de DB com o CR ao longo de todo o álbum, desenvolvendo uma sucessão de acordes aos quais o Coro vai dando uma roupagem digamos que mais “invernal”.
VII (“Broken”)
Um solista masculino do coro (eventualmente baixo ou, no máximo, barítono) vai interagindo com o piano, cantando interruptamente a palavra “broken” mas dando melodias diferentes à mesma num crescendo envolvente e solene e com final contemplativo e bastante nostálgico.
VIII (“Henry Dark”)
“Henry Dark” apresenta-se como um dos temas mais longos, abrindo com um piano/labirinto de sons numa paleta de cores e timbres muito bem mesclado pelo Trio inicialmente, mas com a pronta colaboração do Coro. Um som profundo, paradigmático de toda a obra apresentada por D. Bernardes, pianista nascido em 1986 em Alcobaça, terra de mítico Mosteiro, classificado como Património da Humanidade pela UNESCO e segundo a Wikipédia em português “a primeira obra plenamente gótica erguida em solo português”. Espaço a meio do tema para o Trio expandir novamente o jazz dito “mais convencional” – superlativa gestão dos silêncios no contrabaixo de AQ acompanhado por um excelente trabalho de escovas de JS com a mão esquerda, nunca perdendo o pendor swing no ride através da baqueta na mão direita. Regresso final ao tema com nova companhia do CR, numa espiral melódica tão bela quanto “obsessiva”.
IX (“Everybody’s Daniel”)
Regresso ao piano solo, através de uma balada extremamente envolvente que abre caminho para nova entrada de um solista masculino do CR, numa espécie de choro/lamento por “Daniel” … o que me levou a imaginar, sem ainda ter lido a obra de Paul Auster claro está, que este motivo musical entroncado na 9ª peça desta obra seria talvez um “requiem para Daniel” …terei mesmo que ler o romance para o poder confirmar, ou não…
X (“Whatever Darkness They Were Leading Him Into”)
Fantasmas pianísticos voltam a pairar sobre o nosso imaginário…mistério, inquietação e será finalmente que chega a…redenção?
XI (“The True Nature of Solitude”)
Na penultima peça o piano de DB dá espaço para que uma solista do CR solte laivos de dor e nostalgia (quem sabe de arrependimento mesmo), numa ladainha onde as teclas brancas e pretas vão amplificando a sua angústia e metamorfoseando o tema através do pedal reverb…transformando de facto este som numa verdadeira “cidade de vidro”.
XII (“The Infinite Kindness of the World”)
Encerramento contemplando ecos de esperança e tranquilidade através de uma melodia final em formato piano solo, que finda de forma abrupta mas com chave de ouro esta obra conceptual de uma rara beleza, que por certo não deixará o ouvinte indiferente.
EPÍLOGO
Sem dúvida que estamos, após várias audições plenas de atenção, perante um dos lançamentos discográficos do ano de 2024 numa geografia sonora que poderia ter 3 premissas: jazz, contemporânea e música coral. A partir do universo literário criado por Paul Auster (“City of Glass”, 1985), Daniel Bernardes retrata/recria sonoramente o ambiente noir de um livro, que ao ouvir esta obra fiquei curioso em ler. Sendo que aqui DB parte de um imaginário com base num romance/policial, é importante frisar e recordar o seu trabalho cinematográfico em parceria com João Botelho, do qual destaco a direção musical do filme “Peregrinação”, numa brilhante e arrojada recriação do disco “Por Este Rio Acima”, de Fausto Bordalo Dias - Página Oficial…curiosamente outro vulto da cultura que tal como Paul Auster nos deixou este ano. Destaque final para o incrível e impactante trabalho visual do álbum com fotografia de Beatriz Candeias Rato, Ana Proença, Roberto Correia, Nuno Henrique e design de Sara Sampaio.
Francisco M. Sousa
(Os putos do jazz)
Dez.2024