24/11/2024
“Espetáculo com e sem lágrimas pintado de poesia, Abril e músicas mil da nossa Identidade SOnora”
Depois do projeto “Riff Out”, do guitarrista e compositor Sérgio Pelágio, ter feito às honras de abertura do ciclo “Jazz à 4ª” do Teatro Municipal de Bragança (TMB), coube ao Inquit’Ensemble propor uma viagem na cápsula do tempo abrileira ainda na efeméride redonda, continuamente marcante e cada vez mais urgente relembrar, que são os 50 anos de Abril. O projeto saído da pena e do labor de Miguel Calhaz, cantor e contrabaixista, propôs-se levar a palco o álbum “Que dia é hoje? – Homenagem a José Mário Branco”, editado em 2022 e produzido em parceria com a Convívio Associação e Município de Guimarães, provavelmente uma das primeiras homenagens póstumas ao ícone da música portuguesa que faz por esta altura precisamente 5 anos desde que nos deixou fisicamente falando. Miguel Calhaz (MC) é um caso raro no panorama jazzístico português se não vejamos: para além de ter consolidado uma carreira na área do ensino da Ed. Musical e pedagogia do Jazz – Lic. em Ed. Musical pela ESE do Politécnico da Guarda e Contrabaixo/Jazz da ESMAE - Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo, sendo Mestre em Ensino da Música Jazz por esta última instituição pertencente ao Politécnico do Porto, é Professor no Escola Artística do Conservatório de Música de Coimbra – tem vindo a trilhar uma discografia própria, para além de outros projetos paralelos, deveras interessante no que toca à exploração tanto da rica Música Tradicional Portuguesa e dos caminhos trilhados pela pesquisa resultante do trabalho de Giacometti, Fernando Lopes-Graça, BRIGADA VICTOR JARA, Julio Pereira, entre outros, como da própria música nascida na segunda metade do Séc. XX que tinha a urgência de nos tentar libertar das amarras obscuras e opressivas em que vivíamos e que se “banalizou” como canção de intervenção mas que eu prefiro chamar "Músicas de Abril". Já o ofício de cantautor continua atual, sendo que para além de José Mário Branco (JMB) foram ao longo da noite homenageados outros mestres da "cantiga como arma e das palavras como balas" como Correia de Oliveira (ACO) e José Afonso (JA). Para concluir a introdução, à qual recorri ao arquivo da Meloteca e Discorama de António José Ferreira, e não perdermos o fio à meada é de salutar importância destacar igualmente os recentes álbuns a solo de MC: “Contra: Contemporânea Tradição” (JACC Records, 2023), “Contra Cantos, Vol.1” (JACC Records, 2024) e avizinha-se já um novo volume desta epopeia performativa em voz e contrabaixo.
A voz doce e profunda de MC e os primeiras notas lançadas pelo seu contrabaixo fazem-se ouvir no nobre auditório do TMB juntando-se um ritmo quebrado do baterista Nuno Oliveira (NO), saudáveis devaneios da flauta transversal de Luísa Vieira (LV) em contraponto com a guitarra elétrica de Mauro Ribeiro (MR). Tanto o baterista como a flautista, que ao longo do concerto irá oferecer segundas vozes, são recentes adições, uma vez que substituem Ricardo Formoso, trompetista galego membro da Orquestra Jazz de Matosinhos e um habitué do círculo musical da Porta-Jazz, e Alexandre Coelho, baterista barcelense dono já de uma interessante discografia via Sintoma Records, Carimbo Porta-Jazz e Nischo. Se este último é digamos, uma “troca direta”, no 1º caso “mudam-se os timbres”, mas não se muda a qualidade dos intérpretes e da própria música debitada. Entretanto ao longo desta célebre música charneira de JMB, com letra adaptada de Luís Vaz de Camões, é muito interessante a forma como João Mortágua (JM) pontuava o refrão em contratempo com os restantes instrumentos, lançando-se de seguida para um primeiro solo bem repescado a fazer lembrar a sonoridade típica dos eternos álbuns de António Pinho Vargas composer, editados entre 1983-91 do século passado. Excelente arranjo de MC, Diretor Musical do projeto, a “esfrangalhar” o tema com mestria e sem desvirtuar a mensagem potente do mesmo. Espaço ainda na parte final para um belo solo de MR, numa guitarra atmosférica, notando apenas que a voz poderia subir alguns decibéis, corrigidos de pronto no 2º tema em que o cantor se fez ouvir na perfeição – apesar de estar visivelmente constipado. Nesse entretanto, referência à efeméride dos 5 anos da morte de JMB (já?!) nas primeiras palavras da música para uma plateia bem atenta, mas que deveria estar mais composta dado o nível dos músicos e respetiva interpretação desta nossa música intemporal e que precisa de ser propagada pelas novas gerações muito confusas que por aí andam.
Em “Maio Maduro Maio” brilhou NO em escovas numa subtileza rítmica a que se aliou a flauta transversal de forma elegante. Solos de guitarra, sax.alto e regresso ao tema com uma nuance final ao estilo de um carrossel – imaginem a canção do nosso Zeca em Paris em cima de um cavalo branco nuns campos elísios que poderiam ser um mote para que as pessoas que governam este mundo caótico e onde reina a desumanidade, amadurecessem para as causas que o “cantor andarilho” propagou a sete ventos, sempre com a liberdade, igualdade e fraternidade como bandeira máxima e inegociável. Continuamos no universo JA em “Tu Gitana” (música em castelhano de autor desconhecido retirada do Cancioneiro de Elvas do séc. XVI) numa melodia tão hipnotizante como harmoniosa captada na sua essência pela voz/interpretação de MC, a ser dobrada numa 2ª volta pela voz de LV, que rapidamente encarnou um motivo incrível soprado pela sua flauta “transversa”, como dizem os amigos do outro lado do Atlântico, abrindo espaço para um solo em crescendo de JM, do “alto” do seu saxofone. Das características centrais da música de MC que rapidamente nos assalta o ouvido é a sua "veia percutiva", pois para além de bem tocar no seu contrabaixo, não raras vezes, recorre com precisão e envolvência à sua madeira, fazendo dele também um instrumento de percussão. Essa espécie de multi-diálogo entre o músico e o seu instrumento, em fusão com a mensagem que o tema vai passando, é fulcral nos seus discos a solo destacados no preâmbulo desta crítica – uma espécie de “trademark” – sendo que em contexto deste “Ensemble’Inquieto” é mais regrada, até porque existe um baterista para a função, mas aqui e ali continua a dar um tempero especial à sua música. O tema tem o seu epílogo com MC e LV em altas deambulações melódicas.
Seguiram-se “As Balas” de ACO com letra de Manuel da Fonseca (por falar neste poeta procurem pf um destes a interpretação de “Domingo” por parte de Mário Viegas com música original de Luís Cília, outro decano que Abril nos presenteou, que aos dias de hoje conta com 81 anos sendo igualmente urgente redescobrir a sua fabulosa obra). O tema iniciou com uns delírios disparados pelos sopros, fazendo a cama para a entrada vocal e profunda de MC. Nos tempos correntes, com multi-conflitos e guerras várias pelos mundos deste mundo doente, esta letra e canção charneira da nossa resistência libertária e contra a opressão do Estado Novo nas antigas colónias, tem uma pertinência atual brutal e é um bálsamo para aqueles que acreditam na força da música e das palavras que lhe advêm para mudar o mundo e torná-lo num espaço mais justo e saudável. Contrabaixo pleno de feeling seguido de um longo “statement” de JM sobre como improvisar com estilo em sax.alto, arrancando os primeiros aplausos da plateia já bem embalada e estimulada pela música que o Ensemble ia brindando os presentes. Seguiu-se um singelo e inventivo s**t de LV a evocar a nossa grande Maria João, expoente máximo da improvisação vocal em Portugal e uma pioneira no jazz, um mundo sempre muito fechado a nichos masculinos e escolas de “elite”, num final do tema em “tutti”. Breves palavras de MC sobre a pertinência e atualidade do tema.
O concerto ia caminhando a passos deveras revolucionários para a 2ª parte regulamentar quando ainda antes da intemporal e sempre comovente “Canção com Lágrimas” de ACO com letra de Manuel Alegre, fiquei a saber pelas palavras de MC que Adriano, tal como o benfiquista e magriço José Torres, também era conhecido pelo “Bom Gigante”. Uma canção plena de sentimentalismo e mensageira de outros tempos bem difíceis e repletos de negritude. Um senhor, que eu não conhecia, sentado ao meu lado soltou-me o seguinte desabafo mesmo antes do tema começar: “Sabe, esta é para mim uma das músicas mais marcantes da minha vida”. Perante estas palavras senti um calafrio e absorvi o tema ainda com mais intensidade através de um curto mas belo solo da guitarra de MR e uma improvisação vocal de MC em diálogo mútuo com o seu cb, com recurso a subtis harmónicos sacados com mestria do topo do longo braço do seu instrumento de 4 cordas, num acastanhado bem polindo e envernizado enfim… vintage.
Ao 6º tema surge “Inquietação”, tema que dá nome ao Ensemble e que reflete o propósito de Calhaz e seus pares: semear o pensamento crítico através do canto destes nossos gigantes da música portuguesa prestigiando o seu enorme legado. MR dá o mote na guitarra, juntando-se rapidamente a bateria de NO e o sax. de JM. De repente fechei os olhos e fiz uma viagem ao passado: seria José Nogueira no saxofone e os irmãos Pedro Barreiros e Mario Barreiros na secção rítmica? De repente surge um solo de LV na sua flauta mágica e volto ao momento presente... com Mortágua, um dos mais brilhantes intérpretes de sax. alto da sua geração (compositor igualmente profícuo, desafiador e inventivo, ver o projeto AXES, nomeadamente o seu álbum de estreia homónimo, lançado em 2017 via Carimbo Porta-Jazz e que foi alvo de crítica nesta plataforma) possui uma bagagem lírica e uma limpidez tímbrica que assentam que nem uma luva na reinterpretação jazzística do cancioneiro abrileiro. Final caótico num acelerando uptempo até à pausa final. Tema seguinte sem direito a pausa em formato declamado, onde MC assume o também o papel de, como diria o já citado Mário Viegas, “dizedor” de poesia, enquanto os restantes músicos do I’E iam recorrendo ao experimentalismo. A meio deste poema brutal de Natália Correia, “Queixa das Almas Jovens Censuradas, genialmente adaptado a música por JMB na obra/compêndio “Ser Solidário” (Edisom, 1982), MC começa a cantar e a versão vai ganhando asas. A mensagem é dilacerante…sobre aqueles negros tempos, versos que vão ao osso da desumanidade vivida naqueles tempos em nome de algo ou de alguém fora de si.
Regresso ao brilhante reportório musical de ACO, com outra marca da época que para a minha geração (80’s) começa a ser também um porto de abrigo: “Cantar de Imigração”, presenteada com um arranjo mais arriscado, fruto dos acordes quebrados da guitarra de MR e do leve “breakbeat” recriado por NO na bateria. Belo solo com reverb e delay q.b. de MR que passou a bola “por alto” a JM, por sua vez assistindo NO para este apontar um solo bem dinâmico entre peles e pratos diversos, finalizando com estilo antes do regresso final ao tema. O concerto revelou o seu equinócio sonoro com o tema “O que faz falta” de José Afonso, de forma a mudar o paradigma mais triste e melancólico dos temas anteriores e podermos regressar a casa com um sentimento mais alegre/vivo pois este transmite uma alegria contagiante, seja em versão jazz, pop-rock, erudita, eletrónica ou outro estilo qualquer. Na entrada da melodia principal há uma desaceleração, mas mal esta finda, regressa o "circo", respetiva dança dos instrumentos do quinteto e não sei porquê veio-me à memória não uma “frase batida” mas sim os Sitiados do saudosíssimo João Aguardela, também ele um visionário noutra época posterior já em liberdade mas com alguns comportamentos e mentalidades presas àquele passado que aqui foi exorcizado. Este “Cantar…” vai evoluindo e MC br**ca com a toada melódica do tema, improvisação a rodos e a canção cada vez mais espaçada e prolongada no tema. Destaque final para o Pjbproductions, promotora deste concerto em parceria com o TMB, por nos ter disponibilizado uma folha de sala sempre muito bem vinda, com a respetiva sinopse, alinhamento e ficha artística, sendo que a foto que uso neste post/crítica é pertencente à PjB (retirada da sua página de facebook). Uma palavra de especial carinho para o Paulo Boaventura por ter articulado o contacto com o Miguel Calhaz e restantes músicos que se revelaram extremamente afáveis, pacientes e generosos num curto mas salutar convívio no final do espetáculo.
Um belo concerto num Novembro (sim em maiúscula, como antigamente, como se querem os meses frios do Nordeste Transmontano) ainda sem neve mas com uma aragem pré-invernal vinda da SANABRIA e que assim aqueceu e de que maneira o espírito dos presentes. Faça frio ou faça sol, em Bragança ou em Faro, passando pela sua semente na Universidade de Coimbra berço desta epopeia, Abril Sempre!
Francisco M. Sousa
(Os putos do jazz)
Ficha Técnica:
Miguel Calhaz – Voz, Contrabaixo e Composição
Luísa Vieira – Flauta Transversal e Voz
João Mortágua – Sax. Alto
Mauro Ribeiro – Guitarra Elétrica
Nuno Oliveira - Bateria
📸Pjbproductions
Quarta, 20 de Novembro 2024 – 21h
Teatro Municipal de Bragança
(Ciclo Jazz à 4ª)