09/03/2024
"Um Folar Musical/Revolucionário na celebração das 25 balas dos Fadomorse no Teatro Municipal de Bragança"
Com o Teatro Municipal de Bragança (TMB) muito bem composto (a zona central estava praticamente cheia) e com o palco a emanar um “perfume abrileiro” com um fundo vermelho – espécie de cravo visual – Hugo Correia (HC) solta a sua voz profunda num primeiro “Boa Noite Bragança”, enquanto os enúmeros músicos da Orquestra de Sopros da AAChaves (OSAAC) primeiro, os músicos dos próprios Fadomorse (FM) depois, iam ocupando os seus lugares num palco que em termos logísticos deve ter dado imenso trabalho a todos os técnicos envolvidos neste espetáculo, dada a sua complexidade logística. Cinco minutos passados e já depois da afinação geral da Orquestra surgem os primeiros samplers lançados por HC - sinos tubulares, vulgo sinos de igreja, coros de avozinhas pela bela pronúncia possivelmente da Terra Quente ou da Terra Fria (do Nordeste Transmontano certamente) – seguidos por um movimento geral de “desconstrução” em tutti por parte da OSAAC, multipremiada a nível nacional/internacional e uma “canteira” de jovens e promissores músicos na área erudita, a fazer lembra-me o projeto Megafone5 do saudoso, igualmente experimentalista e avant-garde João Aguardela (Sitiados, A Naifa, entre outros) num crescendo imperial. Meticuloso arranjo com destaque e bem para o cavaquinho de HC, o que não deixa de ser irónico mas bem merecido, no meio de uma imensidão de instrumentos, ser o pequeno cordofone típico da nossa Música Tradicional a ganhar o papel de solista. Um início em formato ópera rock e onde Leo Santos já trocava o violino inicial pela “nossa” gaita de fole, dando eco aos entrudos sonoros chocalheiros do Nordeste Transmontano e transformando-se toda esta panóplia numa marcha final que arrancou fortes aplausos para este primeiro tema com cerca de 8min. Abertura em grande desta celebração dos 25 anos de carreira da banda, de génese mirandelense e que pontuava o regresso dos FM a Bragança 19 anos depois, revisitando a sua discografia desde “Gritar o Fado” (2002) até “Meia Vida Depois” (2020).
João Lucas (JL) com um solo fantástico em saxofone soprano abriu o mote para o 2º tema marcado pelas primeiras rimas “bombardeadas” pelo MC (Mestre de Cerimónias e elemento icónico do agrupamento) Hugo Ferraz. Desde os seus primórdios, o projeto FM soube incorporar as linguagens estéticas derivadas do hip-hop de uma forma bem criativa, salvo as diferenças estilísticas, um pouco como fizeram os próprios Rage Against The Machine no seu país e na sua época. Ambiências e dissonâncias várias a remeterem este escrivã brigantino para um “universo zappiano” cimentado por um bom apontamento de guitarra elétrica de Tiago Batista e com uma palavra de ordem a sair com pujança do palco: “Porque a esperança é a última a vencer!” ao mesmo tempo que a minha memória musical ainda associava o som do soprano de JL ao universo de António Pinho Vargas dos finais dos anos 80 - quando editou um par de álbuns icónicos no panorama jazzístico português, fazendo-se acompanhar pelos irmãos Barreiros e o saudoso José Nogueira. Entrada das cantoras para o 3º tema e logo se destacou o timbre contralto de Laura Rui (LR), de voz quente apesar de estarmos na Terra Fria, a servir uma espécie de “chocolate quente” para o público que trocou o conforto do lar numa quarta-feira (ou será o “desconforto” de um canal de televisão qquer ou de mais uns “pregos horários” nas redes sociais?!), num momento de acalmia depois de um início de concerto frenético.
Depois da bonança, nova tempestade sonora com destaque para os fortíssimos da OSAAC brilhantemente conduzida pelo Maestro Luciano Pereira, que me levou a refletir no seguinte: às vezes são nas terras “mais pequenas” que a arte musical mas se faz sentir no nosso interior esquecido e ostracizado (vulgo Trás-os-Montes e Alto Douro). Se no passado a Esproarte - Escola Profissional de Arte de Mirandela começou por fazer ver a Bragança que não era preciso pertencer a uma capital de distrito, muito menos ter um “Conservatório” para ser uma grande escola de música; penso que aos dias de hoje o mesmo acontece na dicotomia entre Chaves e Vila Real. Talvez aqui com a gravidade desta última ter de facto Conservatório, coisa que quando foi criada a escola em Mirandela muito pouco existia em Bragança. Regressando ao espetáculo destaque para a entrada em cena da eletrónica em doses mais cavalares com JL agora em tenor (e não em Atenor, embora perto) fazia pairar no ar o fantasma de uns Bandemónio esquizofrénicos a relembrarem que não há só “Oliveira(s) da Serra” no Alentejo, o nosso azeite sonoro transmontano é tão bom ou melhor que o alentejano…numa miscelânea digna dos Future Sound of London”ela”. Ritmos intrincados e paisagens cinematográficas com espaço para uns minutos de jazz mais mainstream em formato slow bossa antes de nova apoteose no regresso à melodia sempre cativante da “oliveirinha”.
O concerto caminhava para o seu meridiano quando se ouvia “Freeze” com a colaboração de Vasco Alves no violoncelo, em “tempos de crise” anunciados num tema em que o lado 70’s Prog Rock do grupo veio ao de cima com referências de grande porte como Gentle Giant, Soft Machine ou Van der Graaf Generator. Mudança de paradigma e “chega desta loucura, agora uma canção em 4/4” segundo HC a anunciar de forma descontraída “Meia Vida Depois”, tema título do último registo discográfico dos FM que conta a história de uma senhora açoriana, entrevistada na 1ºpessoa e possuidora de um sotaque ilhéu cerradíssimo e maravilhoso. Destaque para novo sampler abrileiro com vozes vindas de oficiais do MFA, sobressaindo uma marimba, um vibrafone e várias palavras de ordem revolucionando o TMB numa espiral sonora operária. E isso sempre pautou uma dupla premissa existencial dos FM – um estilo avant-garde no que toca à composição aliado a uma mensagem político-social bem vincada e aos dias de hoje, bem necessária. Aqui é não só justo como obrigatório referir a Banda do Casaco, talvez o expoente máximo da criatividade extramusical no Portugal do Séc.XX e decerto uma grande inspiração para HC e seus pares. Este cariz de intervenção foi logo de seguida reforçado através de uma referência ao icónico “FMI” e justa homenagem ao inesquecível José Mário Branco. Afinal o interior transmontano também estava ciente e acordado para uma data que jugo estar a passar ao lado de muitos de nós aqui na “província” e são nem mais nem menos do que os 50 anos de Liberdade…Cinquenta!!! Liberdade essa que caso não existam agrupamentos musicais e/ou artísticos que a relembrem diariamente, tende nos dias que correm de tolerância abaixo de zero e de individualidades cada vez mais ameaçadas, a cair num vazio comum muito profundo e catatónico.
Falando em estados de alma, um dos momentos mais sentimentais da noite foi marcado pela entrada em cena dos Odores de Maria, icónica banda brigantina, onde foi evocada toda a sua caminhada - 20 anos de existência – e a sua voz/mentora original, Maria Zulmira (MZ), homenageada ao mesmo tempo que um aroma celta-ibero irrompia no sumptuoso auditório do TMB, numa desgarrada de violinos à lá The Chieftains e até um piscar de olhos a The Cranberries quando surge a voz de MZ, que apesar de já não estar connosco presencialmente teve em espírito certamente neste bonito momento do concerto. Enquanto o Avô de HC - presente no público - também era homenageado, entravam novos convidados (o antigo membro Óscar Correia nos teclados) para um tema onde HC com recurso a uma guitarra adaptada (de cariz elétrico-popular, espécie de bandolim eletrificado) debitou melodias com fragrâncias árabes e escalas quiçá cigano-húngaras destacando-se a voz de LR num tom salomónico repleto de sentimento e espiritualidade. Menção bem honrosa também para a sinergia triangular da secção rítmica do grupo, Bruno Rodrigues no baixo elétrico – excelente groove – e a dupla bem oleada, João Martins na bateria e Micael Lourenço na percussão, muito bem “amplificados” pelos jovens percussionistas da OSAAC.
O concerto caminhava-se para o último terço, sem antes HC fazer uma ode à vida noturno-musical da Bragança do século passado (referência especial aos “bares do Pita e Paulo Xavier” - atual Presidente da Câmara Municipal de Bragança), quando surge “Caminho Certo”, presente na coletânea “Bed Off – O pior de Fadomorse (1999-2013)”, com HC a por o dedo na ferida do centralismo exacerbado: “Lisboa é um bairro muito grande para um país tão pequeno.” Rock progressivo a rodos com arranjos bem complexos e no final uma espécie de “barco do amor” em formato Art Rock, provavelmente o termo que melhor encaixará neste grupo que por si só não se dá a catálogos, prateleiras (que o diga a Fnac) ou géneros/estilos. Ainda haveria tempo para a entrada em cena de MK Nocivo - possivelmente o músico brigantino da atualidade com mais projeção dentro/fora de portas e que ainda este ano foi alvo de homenagem por parte do Município – em “Porque um Povo que não viva a Verdade não pode ser boa Gente” com recurso a um sampler de “Liberdade”, canção transformada em hino sócio-musical saída da pena de Sérgio Godinho, outra pedra basilar do nosso património musical. Som cáustico/incisivo e mensagem corrosiva, abrindo espaço para as rimas bem afiadas do convidado especial (“…eles tiraram-nos o comboio, fecharam a linha do Tua…”).
Penúltimo tema com a participação de Rómulo Ferreira no baixo elétrico e momento para a apresentação individualizada de todos os elementos dos FM, onde até Nicolau (filho de HC) foi abençoado musicalmente. Em jeito de resumo destaco também o trabalho de Tiago Matos nos teclados, igualmente responsável por alguns dos arranjos dos temas que foram apresentados. Em “Se nasceste a gritar porque é que morres calado” destaque para a voz de Cátia Gonçalves a guiar o tema de forma enérgica e repleta de “bom feeling”.
O meu Casio piscava 22:46 aquando do encore e da chamada do último convidado da noite, o violinista Igor Ferreira, numa menção final a Gonçalo Garcia e Miguel Grácio, Técnicos de Som e Iluminação, respetivamente. Neste aspeto houve algum público a “queixar-se” do volume que inundou o TMB, na derradeira batucada em crescendo rodada a alta velocidade…e saída de cena perfeita de uma banda, Fadomorse, em estado de graça, a celebrar um quarto de século, mas certamente ainda com muita música para criar, transformar e partilhar num futuro próximo. Um espetáculo navegado por este “Rio Fervença” acima, sem nunca ir ao fundo e aportando numa bela “bojarda à Transmontana”!
Francisco M. Sousa
Ficha Técnica:
Fadomorse
Hugo Correia - Guitarras e Voz
João Martins - Bateria
Micael Lourenço – Percussão
Bruno Rodrigues - Baixo Eléctrico
Tiago Matos - Teclados
Tiago Batista - Guitarra Elétrica
João Lucas – Saxofones
David Sousa - Flauta Transversal
Laura Rui – Voz
Cátia Gonçalves – Voz
Hugo Ferraz – MC
Orquestra de Sopros da Academia de Artes de Chaves
Maestro Luciano Pereira
Convidados:
Odores de Maria
Vasco Alves (Violoncelo)
Óscar Correia (Teclados)
Igor Ferreira (Violino,Teclados)
Rómulo Ferreira (Violoncelo,Baixo Eléctrico)
Gonçalo Garcia - Som
Miguel Grácio – Iluminação
Quarta, 28 de Fevereiro 2024 – 21h
Teatro Municipal de Bragança
📸João Lourenço Fotografia