26/10/2024
“Vindima uptempo* ao Douro Jazz 2024, a um ano de ser Vintage!"
Faz uma semana que desceu o pano sobre a 19ª Edição de mais um “jazz em época de vindimas”, o Douro Jazz, um habitué da programação outonal do Teatro de Vila Real. Um festival que transformou o paradigma vila-realense no que toca à mostra jazzística regular nesta cidade e que se tem vindo a tornar ao mesmo tempo um statement de risco e longevidade.
Dos 7 concertos, que decorreram entre 3 e 18 de Outubro, apenas não tive a oportunidade de assistir a 2: ao contrabaixista Demian Cabaud em quinteto, que presenteou o Pequeno Auditório com a seu mais recente “Árbol Adentro” via Carimbo Porta-Jazz, e Luis Ribeiro que pelo mesmo carimbo lançou o ano passado “A Invenção da Ficção” apresentando-se com o seu sexteto no Café Concerto dos Maus Hábitos. Dos restantes segue uma vindima uptempo *(que é como quem diz um resumo muito acelerado, compactado e por isso desta vez mais curto daquilo que costuma ser habitual):
3 Out (Grande Auditório)
“Maria João & Carlos Bica Quarteto”
O certame deste ano abriu em grande, com dois nomes ímpares do panorama jazz pt, Maria João e Carlos BICA, que em boa hora resolveram reencontrar-se e colocar num belíssimo disco de nome “Close to You” temas com muito sumo resultantes de uma série de concertos ao vivo realizados entre 2019 e 2021 entre Sintra, Tavira, Badajoz, Sevilha e Las Palmas. Lançado pela JACC Records no ano passado, veio reavivar a sinergia musical entre os dois músicos, que iniciou nos anos 80 no LP Conversa (NABEL, 1986) tendo-se prolongado numa década de partilha musical intensa e bem presente na 1ª obra dos “Azul” (o mítico Trio de Carlos Bica), nomeadamente nos temas “A Tragédia De Um Homem Condenado A Ser Um Poeta” e “Planícies”.
No TVR desfilaram os temas deste trabalho revelando uma simbiose incrível tanto na escolha das canções/covers como nos próprios originais de Bica (2) e de MJ (1). Maria João é uma cantora/improvisadora ímpar no panorama jazzístico europeu, com uma discografia imensa, rica e recheada de grandes colaborações. Diria que a musicalidade de Bica, sempre dando uma atenção especial às melodias e ao ambiente onde as mesmas se revelam, crescem e coabitam com harmonizações aconchegantes, casa de forma perfeita com o caráter expansivo, fora da caixa e sempre munido de uma teatralidade contagiante que a voz de MJ vai criando ao longo dos temas que foram desfilados. Em “Close to You”, tema título do álbum, celebrizado pelos “The Carpenters”, a candura e o modo como ambos se envolveram foi tocante, brilhantemente acompanhados por João Farinha no piano e teclados (que também acompanha MJ no seu projeto “Ogre”) e Gonçalo Neto, munido de uma bela guitarra Flying V, que deu o mote de abertura do tema e em sequência de um belo solo de Bica, num contrabaixo continua a soar envolvente e cristalino. Destaque também para o tema “Iceland” do icónico “Believer” dos sempre omnipresentes Azul (ENJA RECORDS, 2006), onde a candura e musicalidade do quarteto flutuava pelo Grande Auditório através de uma leveza quase hipnótica. Num concerto duma beleza ímpar no Grande Auditório, que merecia estar lotado apesar da plateia estar praticamente lotada, questiono-me sempre se não seria melhor a intimidade do Pequeno Auditório…mas uma palavra muito especial também aos técnicos de som/luz, que com muita perícia e saber ajudaram e potenciaram ainda mais este belo momento de quase 2 horas. O “encore” trouxe-nos o clássico de L. Armstrong (“What a Wonderful World) que parafraseou de forma exata o tempo que eu e penso que a maioria dos presentes passamos ao longo deste incrível concerto, “Mas que Teatro Maravilhoso”…sai do mesmo a pensar que seria difícil logo na estreia do Douro Jazz voltar a assistir a um concerto de tal magnitude e o mesmo se viria a comprovar.
4 Out (Grande Auditório TVR)
OJM com João Paulo Esteves da Silva
Um dia depois de um início arrebatador do Douro Jazz, esperava-se mais um concerto de alto nível no Grande Auditório do TVR e as expectativas não saíram defraudadas.
A colaboração entre João Paulo Esteves da Silva, pianista e compositor ímpar no universo musical português ao longo das últimas décadas, e a Orquestra Jazz de Matosinhos, um verdadeiro case study no panorama jazzístico internacional – muito bem descrito no livro “Tocamos o que nos Apetece” (CARA Orquestra Jazz de Matosinhos, 2023) já salientado anteriormente nesta plataforma – remonta a uma encomenda da Casa da Música para um concerto em 2011. No ano seguinte no sempre profícuo Guimarães Jazz e em colaboração com a saudosa editora Tone of a Pitch foi gravado “Bela Senão Sem”, que mais recentemente foi álbum de uma reedição especial pelo selo CARA (projeto discográfico umbilicalmente ligado à OJM), que tornou disponível online todas as 70 obras editadas pela tOap (criada por Andre Fernandes) ao longo de 14 anos.
Após décadas a ver, ouvir e ter o privilégio de presenciar em tempo real o crescimento e evolução da OJM e seus músicos (sim já nasceu em 1997 e por isso rapidamente caminha para os 30!), confesso que é sempre com alguma estranheza quando a vejo em palco sem a presença dos seus “progenitores” Pedro Guedes e Carlos Azevedo, na génese de todo o projeto. Todavia a direção esteve a cargo do saxofonista José Pedro Coelho, que cumpriu com assertividade e eficácia a sua dupla função (músico e diretor), longe de deixar o Orquestra órfã desse mesmo papel.
Dos temas apresentados e retirados deste feliz trocadilho musical, “Bela Senão Sem”, destacou-se o tema “Fado Chão”, um tema mítico do cancioneiro de JPES, que neste belíssimo arranjo para Orquestra eleva o seu potencial harmónico e respetiva paleta tímbrica, mas sem deixar que o tema continue a soar fresco e a bailar por entre os nossos ouvidos. No tema título, sobressaiu uma leve marcha inicial e ao contrário da versão presente no álbum “Carlos Bica+Matéria Prima” (Clean Feed, 2010), onde João-Paulo Esteves da Silva toca acordeão logo na introdução do tema, aqui mantem-se ao piano para que o holofote do mesmo recaia nos sopros e só a meio do tema é que entrou o aerofone em cima citado através dum solo muito envolvente e inspirado. Destaque ainda, entre outras, para a subtileza da “Canção Açoreana”, tema de uma beleza intemporal e carregado de uma maresia intercontinental, que a música sem fronteiras de JPES mas com inúmeras latitudes e referências históricas me suscita e neste caso pacifica e para “Moché Salyó de Misraim”, hino carregado de misticismo e a irónica “Pode Ser uma Serra”, tema onde pontua a riqueza rítmica do nosso folclore e que com o arranjo de orquestra me soou a uma espécie de “Filhos da Madrugada” mas em versão shuffle ou até ouvida em reverse. Palavra de apreço também para o cenário e respetivas luzes; um fundo vermelho criado por Pedro Pires Cabral, que dava a sensação de a Orquestra estar enquadrada num belo tapete tão garrido quanto glamoroso. Um belo concerto que deixou o público vila-realense com expectativas de poder ver e ouvir JPES e a sua música talvez num formato mais minimalista ainda que por outro lado, tenha sido bom poder matar as saudades da OJM, que salvo erro, há 5 anos que não pisava o palco do TVR, desde o seu último concerto – o projeto “Uma Viagem Pelos Tempos do Jazz”, em 2019.
11 Out (Pequeno Auditório)
Mané Fernandes “matriz_motriz”
A grande “revelação_semi-surpresa” do festival (uma vez que já tínhamos elegido o álbum “matriz_motriz” como um dos lançamentos mais desafiantes de 2023, editado pelo Carimbo Porta-Jazz) foi poder experienciar ao vivo o mais recente projeto do guitarrista Mané Fernandes, que eleva a fasquia ao nível da composição. Se em registo áudio “matriz_motriz” não deixa o ouvinte indiferente, ao vivo o seu universo cresce e amplifica todas as novas ideias que o músico portuense vem maturando entre o Porto e Copenhaga. Depois de em 2014 dar o toque de caixa com “BouceLab” via Porta-Jazz, seguido do mais “clássico” “Root/Fruit”, é em 2022 que “ENTER THE sQUIGG” (Clean Feed) “rebenta” no panorama musical pt, um verdadeiro statement de MF e sem dúvida um registo que coloca todas as influências do músico e improvisador num imenso melting pot fazendo do mesmo uma obra ímpar deste nosso tempo – penso que o “beat” e o “jazz” nunca tinham tido um casamento tão feliz em território nacional no novo milénio. E assim surge no ano passado o novo registo que vem inaugurar um novo paradigma ao nível da composição e do caminho que vinha sendo traçado por “sQUIGG “…
O sexteto que se apresentou num Pequeno Auditório, que não estava cheio, mas apresentava uma plateia bem composta e interessada em novos desafios sonoros e performativos, era o mesmo da gravação de “m._m.” o que é sempre um bom princípio poder testemunhar ao vivo o registo com os músicos que participaram na sua “feitura”. Ao longo das 6 peças que foram desfiladas, a maioria com uma média a bater nos 10min de duração, foi incrível o trabalho que MF dedicou às vozes, um trio vocal feminino que revelou uma performance espetacular, a saber: Mariana Dionísio, Sofia Sá e Vera Morais. A força “motriz” desta “matriz” assenta muito no trabalho de “corte e costura/colagem” destas três vozes, quase sempre desencontradas no bom sentido, pois iam-se complementando e acrescentando novos caminhos durante os temas e acima de tudo criavam uma simbiose perfeita entre os riffs, acordes e algumas melodias disparadas e posteriormente sampladas pelo laboratório guitarrístico de MF. Tal como quando ouvi pela primeira vez o álbum dei por mim a encontrar alguns laivos da composição de Maria Schneider, que tem o condão de por vezes tornar os sopros de orquestra em vozes humanas – sendo que MF faz o contraponto de tornar estas três belíssimas vozes em instrumentos “não naturais”, pois por vezes soavam a escovas de baterias, sintetizadores e outros sons que acamavam na perfeição o todo musical que era criado. Um som minimal-repetitivo, mas sempre em constante mutação, brilhantemente complementado pelo piano, por vezes preparado e também com recurso à eletrónica de João Grilo. Uma parceria criativa e cumplicidade artística que também ajudava a amplificar as ideias tímbricas e os labirintos melódicos criados por MF. Outra mais-valia da obra executada ao vivo foi a presença da dançarina Brittanie Brown que através da sua coreografia adaptada a cada peça ia progredindo fisicamente nessa mesma mutação físico-sonora. Dessa forma e tal como abri este resumo, elevou o registo discográfico, tornando-o não num simples concerto, mas numa performance multidisciplinar onde a música debitada e a dança explorada encantaram os presentes. No final tive a oportunidade de trocar umas breves palavras com o guitarrista e compositor que me confidenciou, que este era um novo caminho musical que estava a trilhar, sem esquecer o “universo sQUIGG “, funcionando este projeto como uma espécie de “sQUIGG de câmara”. Neste limbo temporal aguardamos ansiosamente por novas matrizes e motrizes.
12 Out (Grande Auditório)
Kurt Rosenwinkel Trio
Considerado por muitos como o “cabeça de cartaz” desta 19ª Edição do Douro Jazz, Kurt Rosenwinkel, guitarrista e compositor norte-americano, nome cimeiro do panorama jazzístico das últimas décadas e com uma forte ligação a Portugal devido aos seus inúmeros fãs que desde o início do milénio foi granjeando por um lado, e pela colaboração regular com a OJM que veio a resultar no registo “Our Secret World” (WOM, 2010). Iniciou-se com lendas como Gary Burton e Joe Henderson, tendo vindo a formar os irascíveis Human Feel. Sempre à procura de novas experiências com músicos de outras latitudes que não só o jazz, aproximando-o das áreas do hip-hop, fusão e soul, o seu papel como produtor também foi de valor, tendo criado a editora Heartcore Records em 2016.
Para este concerto KR foi repescar o álbum “Reflections”, o seu trio de standards lançado em 2009 pela Wommusic do qual fizeram parte Eric Revis no contrabaixo e Eric Harland na bateria, sendo que os músicos que estiveram no Grande Auditório do TVR a acompanhá-lo foram Doug Weiss e Gregory Hutchinson.
Foi um concerto competente, mas longe de entusiasmar pois na verdade a música mais excitante que KR pode oferecer, no meu ponto de vista não será a de reinterpretação de standards, mas sim servir-se do jazz para transportá-lo para outros ambientes. Destaque por exemplo para a sua colaboração no mais recente “Where Are You” de Joshua Redman (Blue Note Records, 2023). Todavia a performance do trio foi irrepreensível do ponto de vista técnico, com destaque para um mais inspirado Hutchinson na bateria com o condão de ir sacudindo os presentes, nomeadamente alguns que pareciam algo entediados com a música que era produzida. Realce maior para o tema homónimo “Reflections” e “Ask Me Now”, ambas do incomparável Thelonious Monk e “Ana Maria” do não menos importante e igualmente influenciador Wayne Shorter. Todavia o concerto não se resumiu aos seus “standards de estimação” e acabou por tocar também alguns originais, com destaque para “Zhivago”. Depois do habitual encore com o final do concerto, e já no foyer do Grande Auditório e até mesmo no Café-Concerto Maus Hábitos na parte de baixo do TVR, foi interessante constatar que o músico norte americano ainda consegue mobilizar muitos apreciadores da sua música, pois dos muitos presentes/músicos que tive o oportunidade de falar sendo mais ou menos apreciadores de jazz, eram maioritariamente guitarristas. Ainda assim achei um pouco caricato/irónico que o concerto do dia anterior, protagonizado pelo igualmente guitarrista Mané Fernandes me tenha enchido muito mais as medidas. E digo caricato/irónico pois MF foi bastante influenciado pela música de KR…será daqueles casos em que um aprendiz de feiticeiro poderá ultrapassar o próprio feiticeiro? No tempo, espaço e contexto certos parece que sim, pelo menos para o meu palato auditivo e curiosidade musical.
18 Out (Grande Auditório)
Orquestra de Jazz do Douro com Maria João
Foi apenas com um ensaio que a Orquestra de Jazz do Douro se apresentou com a Maria João, que teve o condão de abrir e encerrar esta 19ª mostra do jazz em terras vinhateiras. Apesar de alguma ansiedade/tensão sentida no ar nos primeiros temas, o saldo final foi bem positivo: Grande Auditório praticamente cheio e um concerto muito entretido e competente que deixou satisfeito o público e as famílias que se deslocaram ao TVR. Antes mesmo dos primeiros acordes e da entrada da OJD, para um primeiro tema instrumental que serviu para por o pessoal a estalar os dedos - no tempo fraco como o jazz o requer - com o tema “Groovin’Hard” – destaque total para o cenário montado no fundo do palco…além dos caracteres extraídos do cartaz muito bem jazzado por Paulo Araújo com a nomenclatura do festival, o desenho de luzes criado (cortesia de Vitor Tuna) assentava que nem uma luva no espírito outonal e vindimeiro com uma tonalidade vinhateira: sombras de folhas de outono e quiçá até mesmo de videiras já devidamente podadas. Ambiente perfeito para a entrada de MJ no segundo tema, sendo que a cantora desfilou sobretudo temas do cancioneiro norte-americano, muitos resultantes da cumplicidade artística com Mário Laginha que viria a tornar esta dupla lendária tanto ao nível na quantidade de concertos realizados dentro e fora de portas ao longo das últimas décadas como na quase dezena de registos discográficos lançados em duo. Depois do mood proporcionado pelo eterno e sempre outonal “I’m Old Fashioned”, destaque para um dos momentos da noite através do célebre “Canto de Ossanha” de Vinícius/B.Powell, onde a voz e a criatividade de MJ atingiram níveis incríveis e demonstrou a afinidade que a mesma revela também com o cancioneiro brasileiro, brincando com a musicalidade natural do português do Brasil. Depois de um par de temas regresso ao reportório com Mário Laginha, nomeadamente ao álbum “Chorinho Feliz” (Universal, 2000), onde a cantora teve a oportunidade de interagir com o público, contando uma “aventura” que ambos tiveram no Brasil e que deixou o público a sorrir através da sua comunicação sempre calma, ternurenta e repleta de empatia. Nesse entretanto, e na preparação do tema final, MJ deixou o palco e as luzes foram de novo apontadas para a Orquestra com o enérgico “Count Bubba” a demonstrar que a OJD se apresenta em excelente forma. Com o Maestro Valter Palma menos “exuberante”, mas com a perícia habitual no que toca a regência, os sopros mostraram-se em bom nível; destaque para os solos do talentoso Pedro Miranda, em sax alto e respetivo domínio da linguagem be-bop com improvisações de encher não só o olho como os ouvidos, no bom sentido claro. Uma palavra também para o guitarrista Rui Guilherme Cardoso com belos apontamentos a espaços e para a secção rítmica bem coesa e envolvente, apenas com a ressalva de o som do vibrafone do promissor vibrafonista/percussionista Paulo Pontes não estar muito audível e se perder na imensidão da orquestra (ao contrário de quando pegou no “pandeiro"), o que foi uma pena dada a beleza daquele instrumento charneira na história do jazz. O concerto fechou em alta com um dos temas do coração de MJ retirado de “Porgy and Bess” de Gershwin, brilhantemente celebrizado por Billie Holiday e aqui alvo de uma reinterpretação muito pacífica e delicada. Adivinham qual?
Um belo serão proporcionado por esta colaboração de uma artista ímpar, Maria João Grancha (sempre bem-vinda a Trás-os-Montes e Alto Douro, para que possa estimular e inspirar outras novas vozes para o futuro do jazz e da improvisação) e a Orquestra de Jazz do Douro…que tendo em conta ao seu início (por volta de 2004) e ponto de maturação atual, já é “vintage”, isto para encerrar mais um ano muito produtivo do “jazz em época de vindimas”.
Parabéns ao Teatro de Vila Real por mais uma edição do Douro Jazz, extensível aos Lavradores de Feitoria que ano após ano nos tem feito brindar antes e/ou depois dos respetivos concertos.
Francisco M. Sousa
25 de Outubro de 2024
(Crédito fotos )