11/01/2025
“A caixa mágica” *
Autor: Virgílio António Nogueira
O arco desliza sobre as cordas e o barco de casco de madeira sulca a água, beijando-a. A tua mão direita avança e depois recua, convidando o som a vencer o silêncio, percebido através do contacto com as finas linhas férreas, arrancando daí os comboios para as estações onde a inteligência e a sensibilidade tornem as mercadorias tocantes, alimentando a faminta população do lugar.
Auspicioso o passageiro da carruagem atada à tua locomotiva, ele a espreitar pela janela as paisagens sonoras, campos verdes, bosques encantados, florestas de árvores cujos cumes arranham o céu, manchas de frutos vermelhos a ensanguentar o cinzento dos dias de chuva.
Deste a paz a uma guerra que se alastrava igual ao avanço do tumor maligno, a lançar metástases de ódio e raiva, o coice emocional autêntico, forte, duro, que aleija a alma, deixa uma nódoa negra na ambição e corta os pulsos quando se encontram os sonhos falhados, tantas vezes por motivos comezinhos, os comerzinhos diários que é necessário colocar na mesa da prole.
Apresentaste-me Stéphane Grappelli, cirandava na banda sonora do filme de Woody Allen. Gostei do som insubmisso do violino que não estava na fileira para obedecer a qualquer que fosse o maestro, mas para ser o protagonista da história. Rebelde sem perder majestade, as notas swingavam sempre com a elegância de jovens bailarinos que ensaiavam sem a preocupação de falhar o passo na noite de estreia do espetáculo. Grappelli reproduz a doçura do croissant de Paris ou, numa outra geografia, no andamento mais lesto, evoca a confusão da avenida buliçosa de Manhattan.
Recordo a primeira vez que te vi, Renatinha, a menina que parecia retirada a um tempo em que a sobriedade exercia mais fascínio que o espalhafato e o sorriso tinha a delicadeza da composição da bossa nova. Fantasiei com o sorriso tímido, com o cabelo a ondular sem encontrar o areal e aí descalçava os sapatos de lona, caminhava no fim do mar, mergulhava dentro da água e tentava ver os teus sonhos para saber se fazia parte de algum deles.
Tanto estarias no palácio de chão encerado com a pasta laranja que se usava para rejuvenescer o soalho das antigas mansões, a trazer a europa encarcerada no domicílio pelo frio inclemente do inverno, como habitarias a casa do jazz, sem endereço, provavelmente nómada, sem ponto de partida, irrequieta. Fossem os clássicos desenhados nas partituras, ou antes as construções irreverentes, do teu violino, da caixa mágica, nasceram graciosas mensagens de amor que os amantes facilmente compreenderam. Os outros jamais entenderão.
* A CULPA É DAS ESTRELAS Emissão #226 – 08JAN25