07/01/2025
JOSÉ PACHECO PEREIRA – TUDO (PÚBLICO, 28 DE DEZEMBRO DE 2024)
Na verdade, não precisava de ter esta repulsa com a política tóxica dos nossos dias para querer respirar um outro ar, em vez de estarmos condenados a inalar a atmosfera de Vénus. Por isso, aqui vai mais do mesmo, mas de um bom mesmo. TUDO.
Este é um artigo que tem implícito não um conflito, mas um serviço de interesses, não comigo que gasto quase tudo o que tenho e não recebo um tostão, mas com o objectivo do Arquivo Ephemera de, em primeiro lugar, salvar, salvar, salvar toda uma memória dos portugueses e oferecer contexto internacional a essa memória. Sabemos muito bem tudo o que se perde por dia, com a passagem para o lado etéreo de uma geração e com o fim de muitas colectividades e associações que a gentrificação expulsa das suas sedes, e com, - e este é o principal óbice, - com o incremento da ignorância agressiva nos nossos dias. TUDO.
Há aqui um pequeno problema é que para nós, essa memória começa de hoje de manhã para trás. E hoje de manhã já recebemos um enorme pacote com material nórdico, dos dois países que aderiram recentemente à OTAN, incluindo documentação sobre as eleições presidenciais na Finlândia. Depois do material que veio do Curdistão, TUDO.
Com a loucura mansa que assalta todos os amigos e voluntários do Arquivo Ephemera, conseguimos em 2024, muito a reboque das comemorações dos 50 anos, organizar e apoiar cerca de 50 exposições e mais de 150 eventos, palestras, debates, visitas guiadas, inaugurações, edição de vários livros e colaboração em muitos outros, de Monforte à Barragem de Picote, com o apoio de algumas autarquias mais ricas, mas na sua esmagadora maioria pro bono. Ou seja, sem depender do estado. TUDO.
Ao mesmo tempo, centenas de doações, incluindo espólios que mudam a história portuguesa, e muitos mais acervos e espólios, quer dos Césares quer dos “cozinheiros”, usando os versos de Brecht na boca de um “operário letrado”, entraram. Só para dar alguns exemplos, entre os espólios que entraram este ano contam-se os de Otelo Saraiva de Carvalho, de Mário Brochado Coelho, do último Primeiro-ministro do século XIX, António Serpa Pimentel (que entre outras coisas tem toda a documentação da negociação da bancarrota portuguesa, incluindo a correspondência inédita do então Ministro da Fazenda, Oliveira Martins), o do Sindicato Livre dos Pescadores, papéis da família Ferro Rodrigues, e muita documentação da LUAR. E muitos milhares de livros, periódicos, cartazes, gravuras, fotografias, objectos, manuscritos, dactiloscritos. Em Janeiro, teremos muito boas notícias para o estudo histórico do período do Estado Novo e abriremos um novo polo no Mercado do Forno de Tijolo, dedicado ao Núcleo de Fotografia. TUDO.
Temos muitas fragilidades e dificuldades, nem sempre fazemos tudo bem e ouvimos com atenção as críticas e conselhos de quem tem o conhecimento e a experiência nas áreas onde nos movimentamos. Embora façamos muito, não temos as condições de acesso e rapidez que muitas vezes nos são pedidas. Temos uma débil estrutura informática e, embora tenhamos três milhões de imagens digitalizadas, apenas cerca de 10% está devidamente inventariado. Mas há uma área onde seguimos à letra as recomendações dos arquivos, a da conservação. As fragilidades são o preço de ser, como agora se diz, “sustentável”, trabalhar com voluntários e com escassez de meios, - é o preço da independência. E é também a reivindicação da nossa autonomia, em colaboração com todas as instituições públicas e privadas, mas entendendo que há um mérito e uma vantagem em não concentrar toda esta memória no estado. Pedimos, pois, meças a muita instituição que tem centenas de milhares de euros mensais e um output quase inexistente, muitas vezes com uma correlação grande entre a falta de dinamismo e, - perdoe-se o plebeísmo, - muita dor de c***o.
O Arquivo Ephemera é uma dinâmica instituição da sociedade civil, e, para usar o jargão dos nossos dias, tem um grande “modelo de negócios”, que bem podia ser apresentado como exemplo pela Iniciativa Liberal. Esta não imaginavam, mas é o efeito de TUDO.
Repeti a palavra TUDO praticamente em cada parágrafo e escolhi com muito pouca modéstia o paradigma das imagens do romantismo alemão, mas temos por cá uma filosofia implícita, mesmo quando passamos dias a carregar sacos (sempre disse que devíamos ganhar a peso), a tirar agrafos dos papéis, a limpar livros com bolor, a por jornais em ordem, a tentar identificar datas em panfletos (bendito MRPP que os datava quase sempre…), a ler todas as letras do mundo na correspondência, do mais que difícil Salazar, Virgílio Ferreira, Eduardo Lourenço, para o legível Cunhal e Otelo, e a lutar, literalmente a lutar, entre nós pelo espaço e a provar todos os dias que a natureza tem horror ao vácuo. Essa filosofia prende-se com uma herança estranha da soberba de Prometeu, somos um arquivo omnívoro, queremos TUDO.
Na verdade, não é bem com um arquivo que lidamos, mas com uma curiosidade infinita e com o aprender que essa curiosidades traz, em praticamente em todas as coisas, que são o resto dos homens e mulheres que aqui deixam os traços da sua vida. É por eles e o que aprendemos com eles que queremos TUDO e que temos um projecto metafísico, vejam lá a presunção.
Tempo, Relojoaria, Joalharia, Luxo Jornal diário sobre o tempo, a relojoaria, a joalharia, a evolução das mentalidades no sector do Luxo
