09/06/2023
*** FEIRA DO LIVRO DE LISBOA ***
"na massa do sangue", de Evelina Gaspar, com prefácio de Patrícia Reis, Prémio Literário do Médio Tejo (Romance) | PVP 15,90€ ; Preço de Feira: 9,50€
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"(...) Porém um dia houve, devia eu andar pelos dez ou onze anos, que saindo minha mãe de casa manhã cedo para ir sachar o milho, me disse, apontando o dedo ameaçadora, matas aquele frango que está maiorzito e fazes tu hoje o almoço para todos e sem desculpas. Fui sentar-me à beira do poço mal ela se foi para chorar a minha desgraça, pois que me sentia incapaz de acatar a incumbência que minha mãe, com tamanha dureza, me impunha sobre os ombros.
Nunca percebi porque escolhemos sempre, os três, esse lugar para chorar sozinhos. Talvez o poço, por líquida sugestão, atraísse as nossas águas profundas à flor dos olhos. (...) De roda do poço havia uns degraus de pedra que davam em cruz para as quatro direcções da rosa-dos-ventos, como se o poço fosse o coração que habitasse o centro do mundo. Chorei sentada nesses degraus por mais duma hora a lembrar como minha mãe costumava fazer para matar. Esticava com mãos decididas o pescoço da galinha e depois dava o golpe fatal com uma faca bem afiada. Ao meu pai vi-o fazer só uma vez que não era trabalho que lhe coubesse e até me deu pesadelos de noite. Diferentemente de minha mãe, ele deitou a galinha num cepo dando-lhe depois uma machadada com tanta força que separou a cabeça do corpo. A galinha antes de perceber que estava morta, pôs-se às voltas a correr com o coto do pescoço a jorrar sangue às golfadas e eu nunca mais consegui apagar essa imagem. E foi ali, sentada à beira do poço, que me veio à ideia enforcar o frango.
Bem depressa me senti arribar porque me pareceu essa uma morte muito mais digna, já que evitava os derramamentos de sangue. E pelo que eu tinha ouvido dizer, os enforcados em vez de morrerem devagar, asfixiados, morriam muitas vezes num segundo ap***s por se lhes partir o gorgomilo no laço da forca como um galho seco. Assim tinha eu ouvido contar nos Chãos, à saída da missa, sobre um homem que tinha amanhecido a baloiçar num ramo de azinheira para os lados da Enxofreira. Entrei na capoeira com um cordel na mão que fui desencantar à despensa e fui-me ao frango marcado para morrer. Fiz-lhe um laço no pescoço e trouxe-o debaixo do braço até chegar à porta de casa, onde o poisei no chão. Depois passei pela argola da aldraba o baraço e, agarrando-lhe na ponta, respirei fundo para tomar coragem antes de dar um esticão com quanta força tinha. Mas quer fosse devido ao pouco peso do frango em comparado com o do tal homem que se tinha matado na azinheira da Enxofreira, quer fosse por razões derivadas da anatomia específica das aves de capoeira, em vez de se partir o pescoço ao frango como era suposto, pôs-se ele a estrebuchar contra as tábuas da porta numa tão grande confusão de asas a bater e p***s a voar que se me partiu o coração dentro do peito com dó do frango. Dei folga ao baraço, deixando o frango voltar a poisar as patas no chão, e consenti que respirasse por uns segundos, azamboado de medo, de olhar esbugalhado a querer compreender o que se passava mas sem alcançar que eu estava prestes a matá-lo. Porque as aves não conhecem o que seja a morte nem sabem que a vida é só um riscar de fósforo que mal alumia qualquer coisa se apaga logo a seguir. Mas a minha intenção não era, com este compasso de espera, dar lições ao desventurado do frango sobre o sentido da vida e da morte, como podia eu saber, se mal tinha ainda largado os cueiros, que o morrer duns serve o viver engordado doutros? Eu quis foi ganhar tempo a ver se recuperava o sangue-frio, porque sentia na fronte um latejo tão acelerado que até parecia que era eu que estava para morrer dependurada na porta. Inspirei fundo para encher os pulmões de ar e, com um estirão bem dado na guita, voltei a alçar o frango. Mas em vez de morrer num segundo, diabos o levassem, de novo se pôs ele a estrebuchar numa aflição agitada contra a nossa porta e eu, outra vez acobardada, dei folga ao baraço. E não sei dizer o que terá passado pela cabeça do frango nesses dois minutos em que voltou ao contacto com a firmeza do chão, mas eu, pela minha parte, o que pensei foi que, para mim, matar era quase morrer, com a diferença que continuávamos a viver para ver morrer outro frango no dia a seguir. Voltei a içá-lo num repelão em que pus toda a minha têmpera, corada do esforço, mas para desesperança dos meus verdes anos mais uma vez o raça do frango se debateu no ar contra a madeira da porta, sem partir o raio do pescoço. Fiz três tentativas mais para dar ao animal a piedosa morte instantânea que eu tanto queria que ele tivesse, porém revelaram-se vãs todas elas. Acabei por ter de me conformar e esperar que o frango se torcesse, em agonia, à vista dos meus olhos, enquanto dois rios me corriam pelo rosto abaixo, lavando-me o pescoço, por um tempo que me pareceu a mim que nunca mais se acabava. Até que por fim a paz silenciosa da morte invadiu a nossa porta e o sossego instalou-se.
Quando a minha mãe regressou eu tinha os olhos entufados do pranto, mas a mesa estava posta e o almoço pronto a servir. Aprendi nesse dia que mais vale ser a frieza que mata sem piedade que a mão hesitante da compaixão que só mata após o suplício. Percebi que matava minha mãe com muita nobreza e que se eu sentia pena dos animais, então tinha de aprender a matar melhor, mais rápido e sem espavento, ou seja sem dor, ou seja com sangue. Eu bem me sentei com eles à mesa para comer, mas não pude engolir nem um bocado da carne daquele pobre frango que eu tão desastrosamente tinha matado."
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In "na massa do sangue", de Evelina Gaspar, Prémio Literário do Médio Tejo (Romance)