01/02/2018
Quando eu era criança queria ser rica. Mentia que na minha casa tinham três telefones. Nao gostava que meu pai me chamasse de “nega”, porque eu sabia que se ser pobre já era ruim, ser negro e pobre era pior. Meu pai insistia em me chamar “neguinha”. Que ódio. Eu queria ser rica, rica, rica. E bem branquinha. Talvez pra causar inveja nas meninas pobres como eu, que iam saber que eu era rica, iam me olhar de longe e nao me chamariam nunca pras brincadeiras delas. Eu tinha uma tia rica, morava numa casa gigante, alta, cheia de quartos. Às vezes, na saída da escola, eu fingia que era lá que eu morava. Ricos falavam baixo, riam baixo (eu sempre perdia o motivo da piada). Rico tomava banho antes do almoço. Rico, principalmente, tinha casa com piscina ou frequentava o clube. A gente ia pro clube, mas não tínhamos o “título”. As meninas ricas não precisavam fazer esforço nenhum pra nada. Tudo caía em suas mãos naturalmente. Um dia tive uma amiga rica. Ela era loira. Tinha boca e olhos gigantes. Eu era toda pequena perto dela. Desprezei todas as minhas amigas pra ser amiga da menina rica (sim, eu era má e ambiciosa). A diferença estava em tudo. No piso da casa, na qualidade da tv, no video cassete, nas roupas que ela usava. Nos brinquedos. Ser rico era ridículo. Ensinei a ela todas as brincadeiras de pobre, levei pra brincar com a minha turma, comer as coisas que minha mãe fazia. Tomar banho de chuva. Ser pobre tinha uma abertura maior de existência que eles não atingiam. Mas eu vi que tava errado. Que a gente não ia poder ser amigas por muito tempo. Ia ter um momento em que talvez eu tivesse raiva dela, por ter tanta coisa que eu e os meus amigos jamais poderíamos ter. Alguns amigos meus não tinha mais que um par de sapatos. Minha mãe parecia cansada, a mãe dela estava sempre bonita e disposta. O pai sorria dentro de um carro. Poucas vezes vi suas pernas, aquele homem estava sempre dentro de um carro. E eles folheavam revistas como se não tivessem mais nada pra fazer da vida. E marcavam férias. E a coleção de papel de cartas dela era gigantesca. Não tinha graça. Não quis mais ser rica. Nem quis mais ser pobre. Não quis ser mais nada. O mundo era triste. Depois eu menstruei e desejei ter peitos grandes. As meninas de peitos grandes tanto podiam ser ricas quanto pobres. A natureza (antes do silicone) não fazia discriminações.
apud tbm: Machuca (filme/chile, vejam)