20/08/2024
A "xoxação" no candomblé
No Brasil, a partir já do início da efetiva colonização europeia, no século XVI, começaram a chegar os africanos, escravizados, separados e duas famílias e comunidades, transportados para longe de suas terras de origem, obrigados a trabalhar incansavelmente e proibidos de manter sua cultura e suas tradições ancestrais.
Para o nosso país, ao longo de praticamente quatro séculos de escravidão, foram trazidos africanos das mais diversas origens. Bantus foram trazidos dos reinos de Luanda, Congo, Libolo, Matamba e Caçanje. Das etnias dembo, quiçama, ovimbundo, lunda e cuba. Do território onde atualmente existe a Nigéria, foram trazidos escravos das diferentes etnias que compõem aquela nação: Ijexás, yorubás, igbos, hauçás, fulas, etc. De reinos distintos, como Oyó, Oshogbo, Ifon, Abeokutá, Irá, Ifé, Ilorin, Ondo, Ire, Ekiti, Ketu, etc. Foram trazidos os Fon, de diferentes reinos que hoje fazem parte do território do Benin, como Savé, Tado, Abomé, etc. Foram trazidos fantes e axantes.Enfim, a diversidade de origens foi imensa.
Na África, nossos ancestrais viviam em suas comunidades, cada qual com suas tradições. Cada reino, cada etnia, com seus hábitos, seus costumes. As viagens, as trocas comerciais, colocavam esses povos em contato e podia-se perceber influências de uns sobre outros, mas cada um mantinha a base de suas tradições.
No Brasil, todos esses diferentes povos se encontraram nas senzalas, nas plantações, nos mercados de escravos e, antes ainda de chegarem aqui, durante a viagem, nos escuros e insalubres porões dos navios negreiros. Membros de reinos e etnias diferentes, às vezes até mesmo de reinos e etnias inimigas, que guerreavam entre si, passaram a ser companheiros de infortúnio, tendo como inimigo comum o sistema escravista que massacrava a todos indistintamente.
Aqui em nosso país, apesar de toda a proibição e de toda a repressão, buscaram recriar, dentro do possível, as suas tradições. Mas as condições aqui eram bem diferentes daquelas que conheceram em suas terras natais, em liberdade. Aqui não era possível reproduzir toda a diversidade que havia na África. A situação aqui obrigava a que se unissem. Assim, agruparam-se membros de diferentes reinos, nações e etnias, de acordo com a afinidade, com a proximidade de suas tradições. Vários cultos específicos se fundiram, dando origem a novas formas de culto. Várias divindades, que tinham aqui um número menor de fiéis, deixaram de ser cultuadas em sua forma original e se agregaram aos cultos de outras divindades, cujos fiéis eram majoritários. Mesmo assim, surgiram diferentes vertentes dos cultos de Orixás, Inquices e Voduns: Jeje-Mahi, Jeje-Savalu, Jeje Daomé, Jeje-Nagô, Mina Nagô, Igbo, Nagô Egbá, Ijexá, Effon, Fanti-Ashanti (a nação do saudoso Pai Euclides), Oyó, Xambá, Congo, Angola, Muxicongo, Cambinda, Moçambique, caçanje, Tambor de Mina e Tambor de Crioula (no Maranhão), Xangô (em Pernambuco), Batuque (no Rio Grande do Sul). Isso sem falar nos cultos nascidos aqui do sincretismo entre as tradições religiosas africanas e as indígenas, como o Catimbó e a Encantaria. E sem falar também nas tradições do culto de Ifá, que no Brasil foram esquecidas durante décadas e que só muito recentemente vêm sendo retomadas.
Com o passar do tempo, muitas dessas formas de culto foram se fundindo. Congo, Cambinda, Moçambique e caçanje, por exemplo, se fundiram no culto chamado Angola. Apenas os Muxicongo ainda se mantém como culto independente. Da mesma maneira, os nagô Egbá e os Ijexá se fundiram na forma de culto conhecida como Keto, também chamada de Ketu. É possível que ainda existam casas que mantenham os cultos Egbá e ijexá, apesar de não ser do nosso conhecimento. Mas, se houver, infelizmente é bastante minoritário, como as que se reivindicam pertencer ao culto Igbo.
A partir dessa situação, de fusão de diferentes formas de culto, começou a haver uma uniformização da tradição religiosa afro-brasileira, com o consequente desconhecimento e a negação das formas de culto que não se enquadrassem nas correntes majoritárias.
Isso explica em parte o hábito, desenvolvido aqui, da "xoxação". "Se não é igual ao que faz na minha casa, então está errado. Essa prática está tão enraizada no candomblé que, muitas vezes, a pessoa vai à casa do outro apenas para comer, beber e "xoxar". Esse hábito serve, em parte, para satisfazer os egos de alguns, que dessa maneira procuram exibir conhecimentos "mais profundos", que o outro não possui, já que está fazendo "errado". Em muitos casos, a "xoxação" tem uma finalidade mais direcionada: Fazer-se parecer mais "expert" que o outro, que supostamente estaria fazendo "errado", para disputar clientes e filhos de santo, dentro de uma mentalidade mais parecida com a das "igrejas" neopentecostais, de Edir Macedo, Malafaia, Valdomiro Santiago e companhia, que veem a religião mais como um mercado onde se disputam clientes.
Mas, no fundo, a "xoxação" só encontra quem lhe dê ouvidos graças ao desconhecimento de muitos em relação à grande diversidade de tradições da cultura religiosa afro-brasileira, como se todos devessem cultuar o sagrado da mesma maneira uniformizada.
Foi a divisão e desunião dos diferentes reinos e etnias africanas, que guerreavam entre si, que permitiu a escravização de milhões de seres humanos pelos interesses mercantis europeus. Agora, diante dos ataques cotidianos dos fundamentalistas às religiões afro-brasileiras, temos duas opções: Ficar um xoxando a casa dos outros, ou nos unirmos para defender as nossas tradições comuns.
Crédito
Ebati Oni Ikó Ati Ayagbá Omí