23/08/2015
Texto de André Setaro
Antonio Conselheiro, o taumaturgo dos sertões, de José Walter Lima, sobre ser um filme genuinamente baiano, não corrompe a sua baianidade com propostas desvinculadas de suas raízes culturais, pois é uma obra que incursiona no universo de Canudos e de seu líder máximo. O discurso cinematográfico de José Walter Lima, porém, vincula-se mais a um cinema de poesia (na tradição glauberiana e, mesmo, pasoliniana), caracterizando-se por ser um filme mais voltado para a retórica do que para a fabulação. Na sua estrutura narrativa, materiais de origens diversas se conjugam com esta finalidade. Antonio Conselheiro, o taumaturgo dos sertões aproveita, em grande parte de sua narrativa, um material dramático e ficcional realizado há duas décadas, que é complementado por imagens tomadas recentemente. O que poderia dar ao filme uma feição desconjuntada resultou no oposto, tornando-se, no discurso poético, um elemento a mais da sua produção de sentidos, considerando que, no cômputo geral, há um passado (a história do Conselheiro e a sua luta desesperada) e um outro passado (um pretérito que se espraia como um pretérito do próprio cinema baiano). A presentificação do filme vem da montagem contemporânea. E o filme de José Walter Lima, justamente por não se ater a uma linguagem discursiva dentro dos moldes tradicionais da narrativa, toma um voo poético e retórico que retoma, em certo sentido, o cinema declamatório de um Glauber Rocha. As torrentes verbais da fala do Conselheiro são transpostas de um tempo passado para suscitar um impacto nos tempos atuais, um impacto de uma guerra sem fim que se tornou um ponto de referência na História do Brasil: a guerra de Canudos, tantas vezes estudada por pesquisadores, como adaptada para o cinema e televisão e até mesmo assunto principal de um livro de Mario Vargas Llosa.
Por ser um tema conhecido, e talvez mesmo batido, os prognósticos poderiam estar contra o filme de José Walter Lima, mas, surpreendentemente, o realizador baiano sai pela tangente da mesmice (como fizera Sergio Rezende emA guerra de Canudos, uma superprodução que se perdeu no próprio tempo, ou os inúmeros documentários que apreciam Canudos em sua caturrice cinematográfica) para, fugindo da caturrice, situar-se como obra que promove o discurso à condição de mola propulsora da narrativa fílmica. O espectador que o contempla deve fazê-lo com os olhos de um espectador que ouve um discurso sendo proclamado e, ao mesmo tempo, contempla imagens pictóricas. A diegese perde, nesse particular, a condição de univocidade para se diluir num passado quase marienbático.
Antonio Conselheiro, o taumaturgo dos sertões, segundo longa metragem de José Walter Lima, não é uma obra cinematográfica para ser apreciada por quem procura os modelos tradicionais da narrativa fílmica. É um filme que se situa em outros parâmetros de construção, rasgando o evoluir dramático griffithiano (de David Wark Griffith, pai da narrativa clássica com O nascimento de uma nação/The birth of a nation, 1914), para se situar como filme-poema, discurso apoteótico, e barroco, em torno de Antonio Conselheiro.
O filme começou a ser rodado há mais de vinte anos, mas circunstâncias de ordem econômica determinaram-lhe a paralisação. Somente no ano retrasado, o autor resolveu tentar solucionar os obstáculos, para, aproveitando o material já filmado, dar a seu trabalho um acabamento final. Inconcluso há décadas atrás, Walter Lima precisou filmar novas cenas com a finalidade de concluir o longa. Várias dificuldades, porém, se interpuseram, como o fato de vários atores já terem morrido durante o período, inclusive Carlos Petrovich, que faz o papel principal, o de Antonio Conselheiro. E Álvaro Guimarães, o Moreira César, entre outros.
Na apreciação de Antonio Conselheiro, o taumaturgo do sertão, nota-se diferenças na qualidade da fotografia, pois o desgaste pelo tempo tirou as características originais da iluminação de Vito Diniz (que também já faleceu). Há, portanto, um contraste entre o que foi filmado no pretérito e o que foi filmado no presente. À primeira vista, o fato poderia prejudicar a uniformidade da obra, constituindo-se num defeito de estrutura, todavia o default se transforma em estética. Mas o discurso apoteótico, no entanto, não enfatiza verossimilhanças no corpus estrutural, mas solicita, inclusive, a fragmentação de sua narrativa que pode ser lida em três níveis: a história em si de Antonio Conselheiro massacrado pelas tropas do exército; a collage de fragmentos diversos numa perspectiva mais de retórica do que de lógica; e, também, num subtexto, a exaltação da memória como elo não perdido e, por extensão, a memória de um tempo que excede o da ação para se encontrar um tempo da história do próprio processo de criação cinematográfico do cinema baiano.
A utilização do cinema de animação na descrição das batalhas, por exemplo, dá uma idéia da estrutura de Antonio Conselheiro, o taumaturgo dos sertões, como uma estrutura fragmentária, e, com isso, desloca o centro nevrálgico do discurso da opacidade em função da transparência. O autor não se intimida com a urgência do brado, e, no seu filme, a estrutura da fragmentação dá o tom da irrealidade para que a retórica prevaleça sobre os conflitos básicos e se estabeleça uma poética: a poética que é específica do cinema. O tênue limite que separa o documentário da ficção se parte, estilhaça-se, e, por assim dizer, explode na narrativa do filme, mais acentuada de um propósito poético-retórico do que propriamente descritivo.
O espectador que não está acostumado a um cinema de poesia pode até recusar, a princípio, as diretrizes da mise-en-scène de Antonio Conselheiro, o taumaturgo do sertões. E não seria, por acaso, um filme dentro do filme? Há, neste particular, uma metalinguagem que se faz sentir na história de Canudos e no processo de criação do filme. Na evocação do mitológico Conselheiro, José Walter Lima procede a uma espécie de delírio de imagens e sons. E confirma, neste tour de force, a assertiva de que o cinema é uma estrutura audiovisual.
Há muitas décadas no batente cinematográfico, José Walter Lima é um homem de mil instrumentos, pois, além de realizador, é produtor cultural e cinematográfico (é o principal organizador do Seminário Internacional de Cinema e Audiovisual), acaba de produzir, em parceria, um filme internacional, Ilha Dawson, do chileno Miguel Littin, exerceu, durante muito tempo, a coordenação do DIMAS da Fundação Cultural do Estado da Bahia e, justiça se lhe faça, na sua melhor fase. No campo estritamente cinematográfico, o de fazer filmes, escreveu vários roteiros com seu amigo e parceiro Carlos Vasconcelos Domingues (de saudosa memória) e realizou, solo, O alquimista do som (documento raro sobre o músico de vanguarda Walter Smetak), Nós, por exemplo, entre outros. O filme sobre Canudos começou como uma proposta de média metragem, O império do Belo Monte, que se estendeu como um longa.
Não se poderia deixar de destacar a contribuição de Carlos Vasconcelos Domingos, parceiro de José Walter Lima na elaboração do roteiro e no acompanhamento das filmagens primeiras. Seria, de fato, o co-diretor do filme não tivesse a morte ceifado-lhe a vida. No elenco, Carlos Petrovich, um dos atores baianos mais consagrados, faz o personagem título, com a sua pachorra habitual; Harildo Deda, outro ator marcante da história do teatro baiano. Mas muitos dos intérpretes já desapareceram, a começar mesmo do principal, Petrovich. Assim como Álvaro Guimarães (o autor de Caveira, my friend, no papel de Moreira César), Wilson Mello, Haydil Linhares. Entre outros, comparecem o sempre talentoso Bertrand Duarte (o padre de O homem que não dormia e O Superoutro, de Edgar Navarro), Leonel Nunes, Chico Drummond, Passos Neto, Iami Rebouças, Ari Barata, Júlio Goes, Jorge Gaspari, Alberto Luiz Viana, Nilson Mendes, Antonia Adorno. A fotografia do material filmado há vinte anos é de Vito Diniz (grande iluminador da maioria dos filmes baianos pós-ciclo), complementada pela luz de Pedro Semanovchi.
Há, também, em Antonio Conselheiro, o taumaturgo do sertão, uma plástica da imagem que desenvolve a temática por meio de uma profusão de cores, de grafites, de desenhos, de materiais diversos, em suma, aos termos da ação propriamente dita. A montagem, como já foi referida, segue o princípio da collage. E o espírito do Conselheiro permanece vivo nas imagens compostas pelo cineasta José Walter Lima.