O Fio de Adriana

O Fio de Adriana Adriana Novaes é filósofa. Doutora em filosofia e mestre em comunicação.

A falácia do autocuidado Nós mulheres somos mais suscetíveis aos discursos de autocuidado, apesar de alcançarem todas as...
04/09/2024

A falácia do autocuidado

Nós mulheres somos mais suscetíveis aos discursos de autocuidado, apesar de alcançarem todas as pessoas. A repulsa ao esgotamento, ao fim, até mesmo ao processo degenerativo natural de todo ser vivo é a base do mantra de que “devemos nos cuidar”. Esquecendo quem somos, em que estágio da vida estamos, portanto praticamente refratárias a nossas próprias histórias e a nossos caminhos de vida, cedemos aos apelos sedativos de que precisamos “reagir”, “enganar o tempo” e coisas parecidas. Assim, nos mantemos atentas e, por que não, viciadas na busca por procedimentos estéticos, dicas de alimentação, profusão de sementes, chás, nozes, alertas de eventuais problemas gravíssimos que começam com uma “coceira no pescoço” etc. e deixamos de assumir a nossa condição. O que seria pior do que isso? Pior do que lutar uma batalha inglória, porque já perdida, em nome da negação da realidade e do tempo? Em transe, esquecemos de nossos desgastes, de nossos esforços, da dor, quando é da consciência deles que nos tornamos capazes de reconhecer as novidades, as recompensas, as alegrias e os prazeres, a beleza da vida.
Claro que não é fácil. Perder agilidade, lembrar de partes do corpo que passam a doer do “nada”, ter de reconsiderar coisas às quais dávamos tanto valor até ontem, tudo isso exige coragem. Cabe fazer menção às celebridades que têm se manifestado sobre o envelhecimento. Em geral, é patético e irritante. Por quê? Primeiro, porque celebridade não deve ser referência simplesmente por ser celebridade. O tipo de vida específico que têm não pode sugerir qualquer padrão. A maioria viveu em função também da imagem, o que realmente é cruel. Mas as exigências que se forçam a seguir e os recursos de que lançam mão para caber nesse lugar não servem de referência para ninguém. É triste que tantas mulheres se deem ao trabalho de seguir recomendações de celebridades, sendo que vivem uma realidade completamente diferente. Esse autoengano pode até massagear o ego, mas é momentâneo e essa ilusão se desmantela no minuto seguinte, na próxima fatura do cartão ou, pior, na vida perdida para ter mais bu**um. É uma triste prisão fantasiosa.
Paremos de nos submeter a tantos “conselhos”, a recomendações de “nutris”, de “especialistas” disso e daquilo, e passemos a nos ater a nossas histórias, à verdade, a quem realmente somos. Não se trata de sair ao sol, sorrindo e saltitante porque entramos na menopausa, nem de lamentar terrivelmente seu “pacote”. Trata-se de entender simplesmente que se chegou a outro estágio da vida, como chegamos a tantos outros antes. Não atentar para a própria história é sabotar a própria vida.

Nós, mulheres Com tantos eventos, artigos, matérias e programas na mídia sobre as mulheres, suas dificuldades, suas dore...
01/09/2024

Nós, mulheres

Com tantos eventos, artigos, matérias e programas na mídia sobre as mulheres, suas dificuldades, suas dores, seus desafios, tanto reforço da mulher “empoderada”, que até parece que muitos dos problemas ligados à inferiorização e desrespeito à mulher são coisa do passado. Ledo engano. A violência, disso sabemos, ainda é alarmante, com dados assustadores de estupros e feminicídios. Em 2023, um estupro a cada seis minutos, altos índices de importunação sexual, assédio sexual e divulgação de cenas desses crimes. Mas e no cotidiano, na vida social? No trabalho, na educação, no trânsito, provavelmente as coisas estão melhores, não é mesmo? Com tanto sendo dito, mostrado, as mulheres não enfrentam situações absurdas, não é? Ledo engano outra vez.
Poderíamos pensar também que comportamentos desrespeitosos, vexaminosos, ainda se dariam entre pessoas de mais idade, acostumadas por muito tempo à discriminação repetida. Nada disso, infelizmente. Por incrível que pareça, ainda são surpreendentemente recorrentes afrontas diárias às mulheres nos âmbitos comuns do trabalho e da educação. A maioria das mulheres ainda passa pelas seguintes situações ridículas:
1. Em reuniões, uma mulher dá uma sugestão, faz um comentário, lança uma ideia e é totalmente desprezada e ainda, atônita, vê o mesmo que disse ser repetido por um homem que é prontamente saudado e elogiado pela mesmíssima sugestão, ideia, pelo mesmo comentário.
2. Ideias dadas por mulheres são respondidas com desdém e críticas, para serem usadas em seguida pelo chefe homem como se ele tivesse sido o autor.
3. Jovens mulheres estudantes são inferiorizadas, menosprezadas em escolas de maioria masculina sem qualquer cerimônia.
4. A presença de mulheres em ambientes predominantemente masculinos é um martírio para elas, que são desprezadas em seu potencial, preteridas em indicações e cargos, humilhadas.
Mais velhos ou mais jovens, não há absolutamente respeito devido às mulheres. Somos tratadas como tontas, incapazes, inferiores. No ambiente corporativo e no acadêmico, apesar do tanto que se diz, de tantas campanhas e falas, esse desprezo é comum, sem qualquer constrangimento. Então, repete-se aquela exigência que deveria pertencer ao passado: temos que ser ainda mais eficientes, temos que nos masculinizar, blindar, para conseguir reconhecimento, cargos. É claro que muitas desistem, porque não é possível exercer tantos papeis e ainda ser “melhor”, o que na verdade seria o equivalente ao que os homens fazem, se não fôssemos tão massacradas. É por isso que as mulheres ainda são as campeãs em doenças autoimunes, é por isso que sofremos de mais males, porque ninguém se deu ao trabalho de entender que a medicina para nós deve ser diferente porque nosso corpo – Oh! – é diferente, não serve “só” para reproduzir. É inacreditável e revelador, que essa descoberta – Uau! – esteja sendo feita agora, fato demonstrado pelas pesquisas recentes (!) sobre cérebro na menopausa. É exaustivo ter que engolir mais esse sapo e matar mais esse leão todos os dias simplesmente por ser mulher.
Todos os dias, todas nós temos de lidar com algum grau dessa infâmia. Mais da metade dos lares brasileiros são chefiados por mulheres, a maioria mulheres pretas. Elas sustentam ou tentam sustentar sozinhas seus filhos.
Como enfrentar esse impedimento que nos joga na situação retrógrada e revoltante de estar sempre exigindo o óbvio? Não, não conquistamos quase nada, esta é que é a verdade. Sofremos humilhações caladas porque parecem fantasias ou “pegadinhas”, já que se fala tanto dos direitos das mulheres, já que existem leis que nos protegem, embora essas leis sejam questionadas de vez em quando. É preciso jogar na cara dos infames seu comportamento inaceitável. É preciso lutar sem descanso. Mas cansa demais.
São vários os exemplos de enfrentamento: algumas afirmam com ousadia a liberdade de seu corpo; outras têm a grande sorte de contar com companheiros decentes que as apoiam; outras conseguem pagando alto preço, porque se endurecem para fazer frente às grosserias e desmandos. Muitas de nós vão sucumbindo, envelhecendo com a solidão e mais dores que sabores. Muitas resistem, é verdade, mas passam a vida tentando suplantar as memórias dos desprezos ou, ainda pior, dos abusos. Não está tudo bem. Não são as imagens das propagandas que resolvem. Vale a insistência corajosa que já rendeu frutos. Mas não nos enganemos. Há muito, muito mesmo ainda a fazer.

O tornozelo inchado de Messi Às vésperas das Olimpíadas, coroando um domingo cheio de decisões – quem ficou acordado até...
15/07/2024

O tornozelo inchado de Messi

Às vésperas das Olimpíadas, coroando um domingo cheio de decisões – quem ficou acordado até à 1 da manhã vendo a final da Copa América, como eu? – um atleta consagrado, já se encaminhando para o fechamento de sua carreira, chora copiosamente algumas vezes, pois saiu lesionado do campo. Lionel Messi chorou muito, inconsolável. Claro que ficou felicíssimo com a vitória da Argentina, logo após o gol de ouro na prorrogação, num jogo também especial por causa da despedida de Di María. Mas por que, afinal, com tantos prêmios, tanto reconhecimento, uma Copa do Mundo, o atleta chorou por causa de um jogo que não conseguiu concluir?
Tenho duas hipóteses. Uma, óbvia, é o vislumbrar realista do final de um belíssimo caminho. Quando tudo aponta para o fim, a decadência natural e específica de um corpo excepcionalmente hábil, mas também terrivelmente exigido, é difícil não lamentar. Todo e qualquer sinal da inevitável decadência, que nos lembra do fim, é penoso. A outra é que, para um atleta, acostumado à adrenalina do esforço e da glória recompensadora, a interrupção do processo é algo muito duro. As glórias, no caso de Messi e de suas extraordinárias conquistas, vão perdurar, mas virão desacompanhadas da batalha, do dia a dia da superação, própria do esporte, essa escola sempre importante.
Ao contrário do que muita gente pensa, a educação pelo esporte não ensina principalmente competição. Geralmente esse descaminho de conclusão vem à cabeça de quem não teve a experiência da prática esportiva. Ela é, em primeiro lugar, autoconhecimento do corpo e da mente: entendimento da capacidade e extensão das habilidades corporais, acompanhado da sustentação desse autoconhecimento numa trajetória de desenvolvimento pontual e objetivo como parte do todo que é o indivíduo que é também um atleta. Por isso, sinto certo incômodo com o uso de conquistas esportivas como receita para quaisquer sucessos. Pode ser até em parte útil, mas não são experiências similares, longe disso. O processo de treino, da junção e equilíbrio das habilidades de cada um num conjunto de estratégias, considerando também esse todo dos adversários, está longe de ser coisa simples, levando em conta a dinâmica e compreensão de si de cada atleta, do treinador e dos outros profissionais das equipes. Cada um é um todo que é parte atleta. Cada um busca conhecer, dominar e superar os limites de seu corpo e, em alguns esportes, fazer isso em união.
Quando você acompanhar os desempenhos dos atletas nessas Olimpíadas, não perca a valiosa oportunidade de observar e entender essa dinâmica complexa e inspiradora. Lembre-se da pessoa que cada atleta é, do quanto buscou o melhor, o excepcional, o admirável e medite sobre o quanto essa busca tem a ver com a vida de todos nós: ela é dura, pode ser cheia de vitórias e poucas derrotas ou ter muitas derrotas e poucas vitórias, mas essa é apenas uma das perspectivas de nossas vidas. Certamente chega a um fim. É preciso aproveitar toda oportunidade. Boa Olimpíada!

Chico, Olavo e a universidade Quando falamos de universidade, falamos da universidade pública e da PUC, nas quais realme...
30/05/2024

Chico, Olavo e a universidade

Quando falamos de universidade, falamos da universidade pública e da PUC, nas quais realmente há pesquisa. Nas universidades públicas há pesquisa que ninguém quer bancar, porque não dá lucro imediato, na verdade, muitas vezes “lucro” direto nenhum. O que se tem na universidade é alta consideração por aquilo que nos forma, por saberes que nos ajudam a entender quem somos. Antes que alguém reclame acerca da tripla matriz constitutiva brasileira que demorou a “aparecer”, apesar de ter sentido em parte, lembro que a universidade abrigou estudos vários sobre nossa formação, de crítica ao apagamento de nossas matrizes indígena e africana. Pesquisa-se isso há anos. Que bom que se tornou popular: teses acadêmicas, pesquisas feitas nas universidades, deram fundamento para desfiles de escola de samba. Mas parece que destacar isso “pega mal”, porque alguns querem parecer descolados das instituições às quais, claro, devem sua formação.
A universidade é, sim, um mundo à parte, porque reúne uma gente que gosta de ler criteriosamente, gosta de biblioteca, que se dispõe a ser avaliada continuamente, é formada para ter paciência e rigor. Que se forma num processo crescente de respeito às fontes, à história, aos que vieram antes e se esforçaram na mesma cartilha. Sua tendência, fato, é preservar e buscar a verdade, essa “coisa” que, por causa dos tantos ataques e ameaças, muitos parecem duvidar que exista. Muito bem: a verdade existe, senhoras e senhores, sinto muito... Será que é por isso que incomoda e tentam fazer da universidade algo “out”?
Já há muito, as humanidades suportam as críticas ao seu viés de esquerda. Os que fazem esse ataque se esquecem do que nossas universidades padeceram, perdendo talentos, liberdade de cátedra e alunos para uma coisa chamada ditadura. Vinte anos de ditadura fizeram com que a sua contraposição fosse estabelecida nas universidades como um totem a simbolizar sua condição necessária. Esquecer isso é de uma ignorância atroz.
Quem passou pela universidade sabe que as coisas não são tão graves e terríveis como pintam. Há, sim, preferências e injustiças – digam onde elas não existem – mas nada que a desabone do papel que cumpre. Negar isso é desonestidade e, em alguns casos, pura reserva de mercado para se dizer “independente” e ganhar “likes”, mesmo por parte daqueles que dizem desprezar as “redes”, o que é pura fachada, jogo de cena. Seus ganhos correspondem à exploração de um nicho: joguem pedra na universidade e ganhem um “espaço”, especialmente em um jornal que vocês sabem qual é. Ah! E várias dessas pessoas mantêm vínculo com a universidade, não largam essa coisa “ultrapassada”. Que interessante, não?
Passei vinte anos de minha vida na Universidade de São Paulo, em três faculdades diferentes. Fiz todos os cursos que podia, li tudo o que podia: assisti a aulas, palestras, tudo o que pude fazer, fiz. Além dos cursos regulares – graduação, licenciatura, mestrado, doutorado e estágio de pós-doutorado – estudei espanhol, francês, alemão e grego clássico. Até joguei vôlei no time da Faculdade de Filosofia e fiz aula de dança flamenca. Nunca ouvi qualquer crítica ao querer estudar um autor, nunca fui demovida de qualquer interesse. Não estudei autoras de “esquerda” – no mestrado na ECA e no doutorado na FFLCH, estudei duas autoras mulheres –, mas nunca nenhum professor quis influenciar minhas escolhas. Fui bolsista, avaliada muitas e muitas vezes, e NUNCA sofri qualquer patrulha ideológica. Como disse, na universidade, como em qualquer outro lugar, em instituições públicas ou organizações privadas, há injustiças e problemas, mas, por favor, é absolutamente desonesto dizer que esse tipo de coisa só acontece na universidade. É preciso parar de criticar um fantasma e enfrentar os verdadeiros problemas. Onde estão os valentões e valentonas com coragem para tanto? Vão se esquivar, dar uma risadinha e jantar em algum restaurante moderninho.
O caso mais recente desse tipo de coisa aconteceu na entrevista concedida ao Estadão por Francisco Bosco, que apesar de ter todo o direito de falar o que quiser, obviamente, ressuscitou um morto – Olavo de Carvalho – ao qual até se poderia fazer alguma referência no passado, não fosse seu mais recente envolvimento conhecido, profundo e deplorável com o bolsonarismo. E aqui cabe um esclarecimento à la universidade: é inaceitável que a imprensa, jornalistas, quem quer que seja, se refira ao presidente anterior e aos seus asseclas como uma ala política comum, aceitável. Não. Conceitualmente, e isso a universidade e sua chata insistência já esclareceu e repetiu, o bolsonarismo é uma onda de extrema-direita. E extremismo é o oposto do diálogo, da política, da democracia. Não usar essa definição decorre, claro, do equilíbrio atento ao mercado, não de isenção, amor pelo saber, pela verdade ou pela democracia. É compreensível que muitos tenham seus limites a partir de seus interesses, mas então, por favor, tenham também dignidade e parem de empunhar a bandeira do “saber” e da “perfeição”. Não foi isso que vocês aprenderam na... universidade.
O fulano em questão não deveria servir de referência a coisa alguma, muito menos de ataque à universidade, instituição na qual gostam de jogar pedras como se fosse a única a cometer erros e ter problemas. Quem está sendo leviano e ingênuo, cara pálida? Ora, por favor... Quanto se ganha dependendo da direção de uma crítica, de uma frase de efeito, de um nome sacado da manga? Talvez a universidade seja uma das últimas instituições em que é possível dizer que a busca da verdade tem sentido. Antes de rirem, vocês, que gostam de colocar seus títulos acadêmicos após seus nomes, como garantia de autoridade e conhecimento, deveriam pensar melhor. Afinal, vocês devem sua formação à... universidade. É hipocrisia o nome disso, não?
Mas sejamos razoáveis e rigorosos: as críticas não são bem-vindas por aqueles que temem perder poder e influência, o que é moeda. Então, bom é bater primeiro. Bem, os interesses se sobrepõem à razoabilidade. Tentem variar de alvo pelo menos. Proponho um exercício: quem ganha com a crítica à universidade? Vocês são inteligentes, acho que vão entender.

Racismo e “tolerância”Não me lembro quem foi que tratou disso há algum tempo e que fez acender uma luzinha em mim. Agora...
24/05/2024

Racismo e “tolerância”
Não me lembro quem foi que tratou disso há algum tempo e que fez acender uma luzinha em mim. Agora, assisto a um vídeo de Luiz Antonio Simas tratando exatamente do problema do uso da palavra “tolerância”. Pouco antes havia lido o importante e necessário texto de Claudia Alexandre no Estadão. Pois bem, “tolerância” é uma palavra que aprendemos associada à ideia de aguentar algo que não é aceitável ou aceitar algo que não se quer ou que não se pode impedir. De certo modo, herdamos essa ideia do século XVII por causa da violência exacerbada que opôs católicos e protestantes na Europa. No início do século XVI, a Reforma protestante desencadeou um processo longo e sangrento de disputa, no qual muito se escreveu em tom de horror e apelo para que algo se fizesse para acabar com a matança. A Contrarreforma e a retomada da Inquisição foram contrapartidas à ruptura com a Igreja que iniciou um período de violência extrema, como o século XVI francês. Evento símbolo desse embate funesto foi o massacre de São Bartolomeu, na noite de 24 de agosto de 1572.
Esse sentido herdado de um contexto específico precisa ser revisto. O nosso tempo e lugar exigem outra compreensão. Somos um povo pluralíssimo que felizmente vive a cobrança de conhecimento devido de suas matrizes africana e indígena. Bem sabemos como é difícil que se entenda como constitutivo algo tomado como marginal durante tanto tempo. Já passou da hora de afirmarmos sem tolerar. A tolerância diz respeito à ideia de suportar, como se aguenta algo indesejado, incômodo, que não se pode impedir. Mas não tem sentido ter de “aceitar” ou “suportar” algo que nos constitui enquanto povo. Somos plurais. Passamos tempo demais cortando partes de nossa identidade em nome de preconceitos, sob o ódio e a ignorância. As religiões de matriz africana são constitutivas de nosso país, de nossa formação. Não cabe pedir tolerância, mas investir em conhecimento e celebrar o respeito com alegria. Como estamos num momento em que é necessário lembrar coisas óbvias, não há melhor ou pior religião. As pessoas devem ser livres para professar a sua fé ou não ter fé, contanto que não desrespeitem as outras. Não é para chutar santa, não é para demonizar entidades. Há um racismo religioso no Brasil que precisa ser apontado, combatido e punido devidamente. E essa reivindicação é uma bandeira da democracia, por um país verdadeiramente justo e solidário, de direitos respeitados e pluralidade afirmada.

Saber dançar Acabo de ler novamente a escritora espanhola Rosa Montero, agora não um romance, mas o também ótimo O perig...
21/05/2024

Saber dançar

Acabo de ler novamente a escritora espanhola Rosa Montero, agora não um romance, mas o também ótimo O perigo de estar lúcida. De modo corajoso, ela envereda pelas aflições, desequilíbrios e sofrimentos de vários escritores e escritoras, mostrando que suas obras foram o meio para que suas agruras pudessem ser suportadas. Montero, no entanto, não busca qualquer indulgência para os tantos artistas dos quais trata, inclusive ela própria, e essa me parece a grande qualidade do livro. São pessoas de carne e osso que lutaram para encontrar um lugar e um tempo próprios para se abrigarem, o que não significa necessariamente alguma “salvação” ou “sucesso”.
A sinceridade e a honestidade com as quais Montero trata esses escritores se traduzem na afirmação do desequilíbrio, sem romantizar nem demonizar as doenças psíquicas. Querer ser lido não tem nada a ver com a praga das “orientações à la coach” que pululam nas redes e fisgam os superaflitos. O sofrimento não é receita para “fazer algo incrível”, essa balela, essa receita torta, de que os norte-americanos parecem ser seguidores fanáticos. A escrita não supera nada. É um modo criativo de fazer parte do todo sem ser cooptado pelo apelo sórdido do deserto do mundo: ser quem não se é.
Para mim, a grata surpresa ao final do livro, um presente, é a entrevista que Montero fez com Doris Lessing, uma de minhas he***nas. Mergulhada na velhice, com a clareza admirável dos artistas verdadeiros que não se enganam com a farsa à venda de que a vida é bela, Lessing, na bagunça de montes de livros, poucos móveis e tapetes puídos, mantém a dignidade e a consciência. Era detestada pela direita e pela esquerda – um dos motivos de ser, para mim, uma he***na -, havia tido uma vida difícil, mas mantinha a posição de causar desconforto, ser livre, não se dar o trabalho de fazer média com ninguém. Grande conquista, apesar de solitária.
Celebrando o sentimento oceânico de Romain Rolland, Montero humaniza belamente os escritores, no nosso contexto temerário no qual o artista corre o risco de ser tragado ou pelo estigma ou pela pretensa assepsia do lucrativo mundo da “saúde mental”. Os artistas criam o que é possível com suas vidas e desequilíbrios; a escrita é o motivo e o oxigênio dessas pessoas, tão definitivamente dispostas à palavra. Os criativos têm certa extravagância mesmo e, desse modo, nos ensinam a complexidade maravilhosa e ao mesmo tempo assustadora de nossos passos neste mundo. Cabe sustentar, afirma Montero, talvez numa ética da sincronia, uma sabedoria dançarina.
Viver não é preciso; o importante é saber dançar.

Em abril do ano passado, o Café Filosófico do Instituto CPFL, dirigido pela extraordinária Marta Machado, fez essa junçã...
09/05/2024

Em abril do ano passado, o Café Filosófico do Instituto CPFL, dirigido pela extraordinária Marta Machado, fez essa junção de Hannah Arendt com Albert Camus - Arendt teria adorado! Uma grata surpresa!❤

Vivemos em tempos de instabilidade pós-pandemia, em uma atmosfera de confusão e crises que afetam todas as esferas de nossas vidas.Em meio a isso, torna-se u...

Enxergar Você já usou a expressão “não enxergar a um palmo do nariz”? Ela dá um bom exercício. Enxergamos, vemos, verifi...
30/04/2024

Enxergar

Você já usou a expressão “não enxergar a um palmo do nariz”? Ela dá um bom exercício. Enxergamos, vemos, verificamos, observamos e percebemos, como quando sentimos algo e então intuímos uma consequência ou uma intenção. Há uma espécie de importância na pretensa capacidade de “saber sem ver”, sem ler, sem atestar, como um conhecimento mágico, captado por “espertos”. Mas, na verdade, os que sabem já observaram muito: prestaram atenção e guardaram cores e reações, movimentos e respostas. Às vezes essa sabedoria parece vir do nada ou de uma teimosia, mas prestar atenção no modo como aquela pessoa quieta faz uma avaliação precisa que surpreende os outros que são, em geral, tão falantes e convictos de suas certezas, faz com que a gente desperte para a necessidade de simplesmente observar.
Nosso conhecimento surge dos sentidos, da observação. Sem cair no indutivismo ingênuo devidamente criticado pelos filósofos da ciência ou entrar em contenda com racionalistas, fato é que precisamos de atos simples de atenção para compreendermos o que está acontecendo. Infelizmente, no nosso cotidiano, prestar atenção ou enxergar não é algo assim tão fácil. As exigências e precauções às quais devemos corresponder o tempo todo, tiram muito de nosso estado de alerta para o que realmente importa.
Não se trata apenas do “estar presente” repetido em muitas e múltiplas formas em mensagens e frases de efeito. É a necessidade de ver, sentir, usar os recursos do próprio corpo. Muitos de nós, se tivéssemos verdadeiramente prestado atenção nas pessoas, em suas atitudes e no modo como nos sentíamos nas situações, não teríamos cometido alguns erros, provavelmente não teríamos perdido tanto tempo e energia com pessoas e lugares que gritavam sua incompatibilidade em relação a nós. Mas não quisemos ouvir, não enxergávamos essa desarmonia, deixamos os nossos extraordinários recursos de lado e fomos condescendentes; recebemos até desaforos e disfarçamos, aceitando descompassos que eram intransponíveis.
Valorizar os recursos de nosso corpo para perceber o que está a nossa volta parece algo natural e simples. Bem, não é tão óbvio assim enxergar o que está a um palmo de nosso nariz.

O envelhecimento Envelhecer não é para qualquer um. Eu, que estou chegando aos cinquenta, sentindo as dores e os incômod...
09/04/2024

O envelhecimento

Envelhecer não é para qualquer um. Eu, que estou chegando aos cinquenta, sentindo as dores e os incômodos da menopausa, ao mesmo tempo vendo e cuidando de minha mãe, verificando a passagem do tempo e suas consequências em parentes e amigos, estudo e tento entender como me posicionar em relação à passagem do tempo, ao envelhecimento.
Como todo fato e condição contemporâneos, logo essas considerações acerca de algo simplesmente constitutivo de nossas vidas se torna, como diz um amigo, “commodity”. E aí temos frases nas redes, livros, eventos e cursos. Pois bem, fato é que a população está envelhecendo, novas doenças “aparecem”, consequentemente um rosário de informações e desinformações, remédios, receitas e “pensatas”. Como afirmou minha segunda filósofa preferida, Rita Lee Jones, é preciso ter coragem para envelhecer. Trata-se de decadência natural, contra a qual lutamos até certo ponto, para garantir a dignidade e a fruição da vida. Aceitar o que de bom chega de verdade – maturidade para aqueles que investiram nela – e o que não se vive mais. É deplorável querer ter uma idade que não mais se tem. É triste e até abominável assistir à luta inglória de tantas mulheres (principalmente) para ter o corpo, o rosto, a disposição que tinham e, pior, “vender” isso como algo possível para as outras. É aí que os produtos imperam. Não, aquele creme que custa um rim não vai fazer sua pele rejuvenescer 20 ou 30 anos. Não. Aceite ou entre na faca e fique com rostinho de plástico.
Cada idade tem, sim, seu encanto. Mas o encanto maior da passagem do tempo é jogar na nossa cara o quanto nos empenhamos em usá-lo bem. Isso sim, é sério. E então? O que você tem feito do tempo que lhe foi dado viver?

Como a tecnologia pode bagunçar a cabeça A luz de alerta começou a piscar entre 2010 e 2012: as notas médias dos alunos ...
01/04/2024

Como a tecnologia pode bagunçar a cabeça

A luz de alerta começou a piscar entre 2010 e 2012: as notas médias dos alunos no PISA – Programa Internacional de Avaliação de Estudantes – começavam a cair e despencaram desde então. Essa queda coincide com o início do largo uso dos celulares e smartphones, assim como com a disparada de casos de estragos na saúde mental, especialmente de meninas. O desempenho dos adolescentes de 15 anos que fazem essa prova caiu vertiginosamente. E essa queda não é exclusiva de jovens das classes mais pobres. E apesar das tentativas de desviar do assunto, enaltecendo o uso “correto” da tecnologia em sala de aula, o estrago é grande demais para simplesmente defender uma dosagem. Vejamos por quê.
Nossa inteligência, que pode ser definida de várias maneiras, sempre tem a ver com a capacidade de usar atributos que nos são próprios como a linguagem, a busca por novas soluções, saber lidar com situações diferentes, encontrar saídas. Nossas habilidades são muitas, mas exigem disposição e treino. Cérebro que funciona bem é aquele que é exercitado. O estímulo e a repetição, a atenção e a concentração são imprescindíveis para aprendermos qualquer coisa. Sem dedicação, sem repetições e exercícios, não conseguimos nada. Nossa mente precisa de desafios. Se considerarmos o pensamento, nossa capacidade de examinarmos a nós mesmos, lembramos que silêncio e a oportunidade de ficarmos sem quaisquer outros estímulos são fundamentais. Não é possível prestar atenção na nossa própria conduta, na dos outros, na realidade, sem estarmos dispostos e desimpedidos de outras demandas. Pois bem, acho que ficou evidente: hoje, é muito difícil termos esse tempo sem estímulos. Nós, adultos, podemos lembrar o que é isso, ainda que também estejamos sugados pela “urgência” das “notificações” e das falsas demandas do aparelhinho sem o qual não conseguimos ficar. A ameaça para crianças e jovens é maior.
Aprendemos pela consciência de nós mesmos, no enfrentamento de nossos medos, aprendemos observando os outros, tendo de fazer algo, não apenas “curtindo”. As relações, o olho no olho, a atenção às respostas das pessoas, a reciprocidade de comportamento, nos ensinam a viver. A resposta programada que o algoritmo captou de um punhado de gostos, estes indicados pelos estímulos dos aplicativos, não corresponde ao caráter imprevisível das relações no calor de nossa vivência cotidiana. O algoritmo, sabemos, recolhe, armazena e repete o modo como já reagimos, ou seja, o que fizemos no passado. Mas a vida não se repete. Aprendemos no convívio, às vezes no enfrentamento. Como resultado, temos uma assustadora quantidade de crianças e jovens hipersensíveis, muito suscetíveis a quaisquer contratempos, inseguros, medrosos, instáveis, paralisados. Considerando as potencialidades de nossa mente, as exigências de nosso tempo, nada poderia ser pior, mais avassalador, do que uma geração fragilizada e atormentada, medicada e incapaz de pensar, de lidar pelos próprios meios, com a realidade. A consciência de si, lembremos, é a base da conduta ética.
A tecnologia não pode ser parada, sejamos realistas. Mas a pergunta necessária, feita quando do impacto das tecnologias mais destrutivas do século passado – o que vamos fazer com esse conhecimento, com essa tecnologia? – precisa ser refeita e guiar nossas escolhas. Nada pode ser pior do que uma geração que não sabe pensar.

Woke ou identitarismoA filósofa norte-americana Susan Neiman está lançando aqui no Brasil o livro A esquerda não é woke,...
26/03/2024

Woke ou identitarismo
A filósofa norte-americana Susan Neiman está lançando aqui no Brasil o livro A esquerda não é woke, no qual critica o movimento identitário como um mal para a esquerda, tendo sequestrado suas pautas e estrangulado o raio de atuação e reivindicação de que esta concepção política sempre gozou. Os valores universais que a esquerda sempre defendeu foram postos de lado e são combatidos com veemência pelos identitários. Vou tratar de alguns pontos dessa disputa.
É bom começar com o esclarecimento de que essa abordagem woke, por mais que possa ser criticada, corresponde sim a uma demanda legítima de reconhecimento de perdas e impedimentos históricos, violência praticada durante séculos concentrada na escravidão – é importante dar nomes às coisas. O fato é que nossa estrutura econômica foi construída tendo por base o trabalho escravo, a exploração e a expropriação. A raiva muitas vezes demonstrada no tom da pauta identitária, portanto, responde à claramente identificável base de uma cultura de privilégios feita com extrema violência. Se não partirmos disso, perdemos o chão dos fatos que deve servir a toda consideração da realidade e a busca por respostas.
No que diz respeito ao aporte teórico dessa estrutura, feita por nomes europeus como Thomas Hobbes, Montesquieu, Immanuel Kant etc., a pergunta é se devemos jogar o bebê com a água do banho. Não, respondem os intelectuais formados pelo estudo desses autores, já acostumados nos últimos tempos, a responder porque Montesquieu, Kant e Hegel escreveram linhas racistas.
Aqui temos níveis diferentes de apropriação. Alguns novos intelectuais – negros, mestiços, mulheres, indígenas – abraçam essa nova onda com fervor, já até exagerando e distorcendo algumas de suas concepções mais comentadas, como racismo estrutural e lugar de fala – sobre o que os autores Silvio Almeida e Djamila Ribeiro já se pronunciaram – e é compreensível que o façam, porque eles nunca tiveram lugar ou oportunidade de falar desse patamar. Cobram os autores que ajudaram a formar um mundo que os colocou à margem de tudo. Não compreensível? Por outro lado, algumas figuras da direita e mais notadamente da extrema direita forçam essa mesma distorção para enfraquecer seu sentido. Essa briga, sabemos, tem sido transformada em arma da extrema direita para ridicularizar e escantear essas pautas da esquerda. Na escalada que assistimos nos últimos anos, a concentração do debate em referências variadas por exemplo à orientação sexual, fez com que valores universais como igualdade fossem distorcidos também, na medida em que reconhecer direitos de quaisquer brancos passou a ser visto como uma “traição”. A disputa se apequenou em nichos nos quais as grandes questões não são sequer mencionadas. Aí temos outro problema. Nichos são nichos de mercado e tem muita gente que “carrega nas tintas” para aparecer mais e ganhar com isso.
Fato é que ainda vivemos numa sociedade muito desigual, e que apesar das oportunidades recentes, enfrenta uma onda contrária perniciosa e burra que usa fragilidades para ganhar likes. Num mundo em que as imagens e as mensagens simplificadoras alcançaram uma disseminação e força extraordinárias, insistir em valores universais parece luta perdida, ainda mais quando reivindicações legítimas são capturadas pela simplificação atroz.

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