22/09/2024
Quase trinta anos depois, Keith Jarrett no Blue Noite de Silviano Santiago (https://www.companhiadasletras.com.br/livro/9788535938937/keith-jarrett-no-blue-note) é reeditado com as belas palavras de Heloisa Teixeira (Heloisa Buarque de Hollanda): "Que o leitor não se engane se pensa tratar-se este volume de uma reunião de contos sobre relacionamentos homoafetivos estrito senso. Nele não existem papéis se***is muito definidos. São improvisos que têm como leitmotiv uma permeável disponibilidade para o s**o. Assim como um meio espelho através do qual fossem refletidas construções recorrentes de um eu que dissesse você. Assim como no jazz se define o s**t singing: a réplica vocal de um instrumento de sopro; a voz mimetizando um instrumento. Sem palavras." Mas talvez me deixando enganar fui em outra direção, em "Entre homens, entre lugares", publicado em O Homem que Amava rapazes e outros ensaios: “Começo com o mal-estar de “Days of Wine and Roses” de Silviano Santiago . Acordando em uma madrugada de domingo, o protagonista nomeado como você (recurso que se repete no livro inteiro), parece estar num limbo temporal e espacial, não só por causa deste estado intermediário entre o sonho e a vigília, mas por não se sentir pertencente, nem na própria casa, que lhe parece um quarto de hotel, em que os próprios móveis parecem indicar uma recusa. “A poltrona é velha e pouco cômoda. Está encardida pelo uso. Ela não combina com você. Você não combina com ela” (p. 53). A situação que poderia favorecer o devaneio ou um encontro consigo mesmo apenas marca a solidão diante da imagem da rua vista pela janela, diante dos compromissos para o fim de semana desmarcados na secretária eletrônica. A secura da paisagem sob a neve encontra, ecoa e amplia o desamparo. “Você imaginou que não havia casas na cidade. Não há casas. Só ruas. Você imaginou que não havia famílias na cidade. Não há famílias” (p. 55). Casa e cidade são espaços físicos e afetivos de desolação. Estrangeiro numa cidade desconhecida, solitário em casa, insatisfeito com o que passa na televisão, eu aceitando o convite começo a me ver na narrativa, aspirado, seduzido por este você. Dois eus frágeis se encontram, o do leitor lançado à narrativa e o do narrador que recusa a primeira pessoa, com dificuldade em se enunciar, em se confessar. Narrador que pode ser o mesmo durante quase todo o livro. Como se a liberdade possibilitada pelo subtítulo — Improvisos de Jazz — se contrapusesse ao uso do você, marcado por um certo pudor da autobiografia, não fosse o autor já de longa data hábil em transitar pelas fronteiras entre a ficção e a realidade. Silviano se permite uma afetividade, pouco comum na sua obra [até então]. Mesmo a citação de Keith Jarrett tem menos um papel metalingüístico do que afetivo. Ela constitui uma memória pessoal, recurso de identif**ação com o leitor, não um exercício de pastiche. Mesmo o distanciamento de vo**ur que poderia haver ao colocar um discurso tão íntimo em segunda pessoa só se desloca em relação ao crescente confessionalismo da contemporaneidade, a obsessão pela auto-revelação. A música é uma metáfora para uma narrativa caudal, que se desdobra pela memória, pelas impressões, e rompe as amarras do olhar vigilante de si mesmo e do outro.
Começa também a lembrança. Da madrugada de domingo vamos ao início do fim de semana, sexta-feira. A solidão do presente remete a uma procura na memória, ou melhor, a uma disponibilidade para o passado. Até chegar na quinta-feira, um calendário invertido. Como não sabia por que estava naquela cidade, também não sabia por que ligara a Roy, de quem fora amante por seis anos, vivendo em “apartamentos separados e [na] mesma cama” (63). O s**o criou a intimidade, não o contrário. Reencontro pelo telefone, sem corpo, sem olhos nos olhos, só voz, depois do desaparecimento após anos. Não o pedido humilhado de uma mulher apaixonada ao homem que não a ama mais de “A Voz Humana” de Cocteau. “Você pensa agora que o telefone é uma forma de encontrar uma pessoa sem verdadeiramente encontrá-la” (57). Há todo um ritual cotidiano que antecede. A sopa. O corpo quase nu, que se sabe depois, envelhecido. A sobremesa. O uísque. Novamente o uísque.
Começam a conversar, a jogar. É o outro, ele, Roy, que pede. O número do telefone. Você quer dominar, achar razões para ligar. Você até acha. Você quer controlar. Começa o streaptease. Primeiro, as roupas descritas, depois o passado compartilhado aflora. Ironias e ciúmes. Os amigos perdidos no mundo. Os amigos sobre quem se silencia não por pudor diante da morte, da AIDS, mas para evitar ser redundante, talvez. Não há o que falar, nada para esconder. Resta a constatação da mudança nos bares que fecharam, do corpo que muda. De uma identidade gay transitamos para o horizonte da experiência cotidiana. Aflora a mágoa. E você conduz a fala para que a “ternura ressentida e silenciosa” (p. 64) não invada a conversa, para que não perca o controle sobre a afetividade. Esta perda só vai acontecer no último conto, “When I fall in love”, diante do amigo, amante morto. Ao outro, a voz é cedida, ao permitir que dê a versão de sua estória, de seu primeiro encontro, mas só quando o outro não está mais lá. Tarde demais. Não só as lembranças irrompem mas os afetos. Mas nem tudo acaba com a morte. As pequenas brincadeiras fazem o protagonista que envelhece retornar à infância. Pelas memórias o corpo volta a ser criança, sem passado, sem dor, sem ressentimentos, ainda que por um momento: tapar e destapar o ouvido para não congelar em “Days of Wine and Rose” e o chicotinho queimado no fim de “Autumn Leaves”. Em “When I Fall in Love”, o fim é sério, sem a brincadeira infantil de “Autumn Leaves” que nos resgata da auto-complacência, da auto-piedade, mas o jogo ainda não acabou. “Se você nunca soube quando tudo começou, como vai poder adivinhar como tudo vai terminar? é o que você se pergunta” (p. 147). É que me pergunto, nesta estória de amor entre leitor e autor, também plenamente assumida, a única que se passa no Brasil, no Rio de Janeiro. Voltando a “Days of Wine and Roses”, também é tarde demais para que o protagonista assuma, nomeie seu passado, sua “longa relação sexual e amorosa” (p. 65), nos seus limites, mas sem subestimá-la pela ironia. “Você sabe que não foi um caso. Pode não ter sido paixão mas classif**ar o relacionamento de caso é minimizar experiências que te constituíram e te transformam no que você é hoje” (p. 66). Há uma luta entre a explicação, os porquês e o que as coisas simplesmente são. Não há palavras suficientes. Com a idade, não vem a sabedoria do velho narrador tradicional; o que nos chega desse romance de contos mistura a constatação da perda e uma frágil sobrevivência num cotidiano hostil, estrangeiro, que resiste a ser afetivizado, mas no entanto o é. A lembrança final do gozo físico é como se instaurasse uma ética do desejo, na constatação mesma do desamor, em que estes pares se nutrem um do outro, não se opõem.
O pertencimento está num encontro passado. Amor entre estrangeiros. Um, brasileiro, que sempre viaja, agora em pequena cidade do interior dos EUA (poderia ser a mesma de ”Autumn Leaves”). Outro, norte-americano em Nova Iorque, que nunca viaja, nunca muda de lugar, de telefone. No final, vem a resposta, Roy dá o troco. Muda de telefone e não permite que a companhia telefônica avise o novo número. Os personagens estão num entre-lugar, que não é um não-lugar, para usar o conhecido termo de Marc Augé. Não se trata de um espaço de passagem impessoal. Apesar do incômodo, este espaço de trânsito é um lugar afetivizado, que se situa também num entre-tempo, como aparece em “Autumn Leaves”: “Você estava (e ainda está) convencido de que nada do que se está passando nessa temporada de neve, frio e chuva está sendo feito para durar” (p. 32). Não se trata de falar de um tempo atrasado, como de um lugar reif**adamente à margem, nem de um fluxo constante que tudo nivela, nadif**a, indiferencia. A melancolia existe não como idealização de um passado morto mas trata-se de um “entre-tempo”(BHABHA, H.: 1998, 338) que emoldura e constitui um entre-lugar, na frágil possiblidade de uma alegria minoritária. Aqui existe um certo cansaço, mas não ressentimento. Não mais o tom empenhado, quase engajado, de “O Entre-Lugar do Discurso Latino Americano” , mas uma certa deriva entre fronteiras e barreiras que se multiplicam e se deslocam. Silviano, trinta anos depois de seu ensaio clássico, se recolhe, se afasta cada vez mais da figura de um intelectual maior. Tempo de projetos menores, pensamentos débeis, sensibilidades frágeis para o presente. O narrar, a experiência substituem as polêmicas de uma universidade que cada vez mais se profissionaliza e se auto—legitima. A cada vez mais visibilidade do escritor diante do ensaísta parece reafirmar esta escolha por uma política do afetivo.
Se para Silviano tudo parece estar tarde demais, o afeto revelado como transitoriedade, lembrança e perda, há mesmo uma recusa da condição estrangeira (“você passou a ter ódio de ser reconhecido como estrangeiro”, p. 26) pela sua estigmatização em favor de um pertencimento no passado ou em lugares públicos,
(...).
Na deriva por lembranças, telefonemas, lugares e pessoas, a solidão seria um último espaço, mesmo no uso insistente de você em Keith Jarrett no Blue Note de Silviano Santiago, revelando não só um eu frágil, mas explorando uma subjetividade sem temor da exposição, nem rebuscamentos formais que ocultem os afetos. Encontros e desencontros são (re)vividos em meio a uma atmosfera de possibilidades sintetizada no fim arrebatador que repito: “Se você nunca soube quando tudo começou, como vai poder adivinhar como tudo vai terminar? é o que você se pergunta”