25/09/2017
Informação Musical
Dé Bermudez - Colcha de retalhos - parte 1
Foi no inverno de 2012 em Campos de Jordão que Dé Bermudez reconheceu a paixão de outrora pelos bordados. "Reconheceu" e "de outrora" pois na árvore genealógica da baixista a costura tem presença resistente e farta. Nas paredes da pousada em que estava hospedada haviam diversos quadros feitos em ponto cruz que muito lhe encantaram. Voltando a São Paulo, Dé comprou algumas linhas e arriscou sua primeira obra: uma toalhinha com os nomes das filhas caninas, Elis e Luiza. Dias depois receberia a visita da avó Doracy que, então, como faz o mestre ao decidir que é enfim o momento de revelar os "segredos" acumulados, os passou adiante à Dé. E assim veio seu primeiro quadrinho: quatro cupcakes coloridos.
Não tem sido tão comum conhecer casos recentes de tradições familiares sendo transmitidas, o que torna o episódio bastante cativante visto que Dé se interessou por tal tradição já adulta e ainda tendo o privilégio de receber as instruções diretamente da própria nata. É como se pudesse identificar aí o reencontro com suas primícias, algo que talvez já estivesse intrínseco no sangue e no pertencimento. Assim como um disco dos pais que na infância e adolescência não nos interessava, e depois crescidos descobre-se o quanto o mesmo é legal e esteve ali o tempo todo.
Há relações além-título entre este passado e o primeiro EP de Dé Bermudez, "Colcha de Retalhos - Parte 1".
Música e bordado tem diversas semelhanças: desde a óbvia de que ambos são expressões artísticas, mas também que ambos são artesanais, ambos necessitam de trabalho manual. A colcha de retalhos cuja qual ilustra a capa é uma reunião de diversos pedaços de imagens em variados formatos e tamanhos, mas a maneira como estão organizados não fazem parecer caótico, irregular e sem propósito. Bem ao contrário, há uma coerência, uma lógica que não tarda a saltar aos olhos, harmônica assim como a reunião de notas o faz na música.
Ao iniciar a primeira faixa, "Paca tatu cotia não", o baixo de Dé é o abre alas. Um dedilhado forte, ansioso. A composição é do baixista Nico Assumpção, cujo um dos primeiros (e, talvez, realmente o primeiro) trabalhos de pesquisa acadêmico sobre sua vida e obra foi feito pela própria Dé! É de se imaginar toda a força vital que deve ter sido necessária para conseguir concluir um trabalho desses nos tempos de internet discada, e tal ímpeto ecoa no dedilhado dos primeiros segundos.
Aos 10 segundos a guitarra de Pedro Pimentel se anuncia com timbre bastante curioso, que num primeiro momento lembra (muito!) um violino. "Se anuncia" pois não é uma entrada brusca e sim aproximatória, como quem observa de longe, se avizinha aos poucos, fazendo notar-se a presença averiguando se é bem vindo ali, pra então instalar-se junto ao baixo de Dé e à bateria de Elder de Souza Souza. Introdução rápida, de 25 segundos, mas com todas essas cenas e memórias.
Inicia-se então o primeiro momento pós-intro com o baixo pontuando agudo ao final das frases, guitarra exprimindo sonoridade divertidamente intrigante, e o prato a anunciar a aproximação do novo ato. Como é esperado em músicas de power trio, os três instrumentos ao longo dos vários atos da música sempre estão bem audíveis e assinalados. Há espaço para a guitarra fritar e distorcer, até a galante inversão aos 2:52 quando a guitarra responsabiliza-se por uma base funkeada e o baixo se põe a solar. Quando se está nos 3:28 a bateria transmuta à batida que os ouvidos prontamente associam ao eletrônico, recordando o próprio conceito citado de colcha de retalhos onde variadas formas se mesclam como os estilos ouvidos (rock, funk, eletrônico) se aglutinam.
Com 4 minutos de música percebe-se que a atmosfera da música mudará consideravelmente, o que é reforçado pela sonoridade em tom de suspense. Novamente a guitarra surpreende bastante com a capacidade de gerar timbres tão envolventes.
O caminho até o fim é uma verdadeira riqueza sonora, trazendo de volta outros cenários pelos quais a faixa passou, novos retalhos de cada instrumento se amostrando, culminando num falso final com aura de conto de fadas do qual pouco se reconhece daquilo que havia ao início. Rola então uma espécie de encore num ato final curto e mais próximo do que se ouviu ao longo da faixa, com encerramento simples e direto.
"Convescote", título da segunda faixa, já como palavra é primorosa como poucas. Tem até certa sonoridade engraçada típica que as palavras de época adquirem, como batuta, quiprocó, fuzarca. Convescote significa piquenique e o ritmo animado com o qual a composição começa não deixa mentir. Baixo e bateria lembrando um samba dominical ótimo pra se haver uma colcha de retalhos estendida sob a grama bem verde, servida de uma cesta cheia dos pitéus, até que a guitarra, ao contrário da faixa anterior, não se aproxima aos poucos e sim invade mesmo, rude, suja e barulhenta!
Porém, o clima de domingo no parque não é abalado e sim graciosamente mantido, com destaque a partir dos 1:12 em que baixo e guitarra executam as mesmas frases num diálogo e sintonia que bem se manterão por toda a faixa. Os dois instrumentos de corda fazem as vezes das mesmas bases um ao outro, permitindo a ambos solar sem sumir as referências. Destaque também à sequência final após os 4 minutos em que diferentes viradas na bateria são ouvidas e a frase principal da música, acelerada porém já cantável, encerra conjuntamente a segunda faixa e a Parte 1 da empreitada de Dé.
As imagens internas do encarte - linhas, tesouras, dedal, fita métrica e outros materiais de costura - são daquelas que rapidamente trazem a associação com "casa de avó". E não é qualquer cacareco que é merecedor do sobrenome "de avó". O grau de exigência é alto! Não basta um bolo de laranja estar bonzinho pra receber o título de "bolo de avó". Não é qualquer jardim que se olha e se reconhece o selo de qualidade de "jardim de avó". Avós deixam impressões digitais de avós nas coisas que mexem. Ao neto, afeto. Todo afeto é subjetivo de se explicar, mas não o é em reconhecer. Afeto este presente, de alguma maneira, nas entrelinhas e entresons destes retalhos.
Impressões de Rodrigo Vettorazzo
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