20/11/2024
O CELULAR ASSOMBROSO
Milton, 63 anos, havia sido internado no hospital, mais uma vez. Ele teve uma vida de lisura, sendo 40 anos dedicado à família e a esposa Joice, 60 anos, que acabava de entrar no quarto:
- Minha querida! Sinto que não vou muito longe. Então, queria te fazer o último pedido.
Disse ele, friamente.
- Que bobagem, meu velho! Vai sair dessa e ainda vamos viver muito.
Respondeu ela.
- Não, sei. Mas prometa-me: no meu velório, ponha o meu celular carregado e desligado na minha roupa. Sabe como é... "hospital do SUS": o que mais tenho medo é de acordar vivo no caixão.
- É uma bobagem, né? Mas tudo bem! Se isso acontecer, farei o que me pede.
Milton era um marido exemplar, carinhoso, paciente, tolerante e compreensível. Sempre trabalhou nas lidas intelectuais e Joice, também boa esposa, tinha duas características: desastrada e muito esquecida. Mas da bondade de Milton ela nunca esquecia. Dia seguinte, em nova visita, Joice entrou no quarto dizendo:
- Querido, andei me informando e soube que o hospital, mesmo "sendo do SUS", fará todos os procedimentos para não correr o risco de você ser enterrado vivo!
- Sim, Joice! Mas, por favor: faça o que eu te pedi. O celular tem que estar carregado e desligado!
"Desligado" porque, se eu tiver que ligar, que ele tenha bateria suficiente pra mim pedir socorro. E, depois, é bom estar desligado durante o velório, para não importunar as pessoas, já que eu vivo recebendo àquele monte de ligações de telemarketing. Prometa-me que Você vai fazer isso!"
- Claro, querido! O que eu não faria por Você?!!
Respondeu Joice.
- Mais uma coisa, não conte isso à ninguém, nem aos nossos filhos! Sei que Você é esquecida mas, por favor, faça um esforço!
Insistiu ele.
- Está bem, querido! Nossa, parece que Você está se autoagorando, credo!
Três dias depois ele faleceu, precisamente no início da noite. Foram feitos todos os procedimentos do hospital, como também deu-se início aos atos fúnebres. O velório seria durante a noite e o sepultamento pela manhã.
Evidentemente que Joice ficou muito abalada com a perda, mas mesmo assim, não esqueceu do último pedido do amado marido. Entretanto, com as correrias do momento, acabou por levar o celular de Milton, para carregá-lo numa tomada da capela mortuária.
Eles tiveram seis filhos: quatro moças e dois rapazes, todos já com suas famílias. O primeiro a chegar foi o mais velho, Sérgio, com esposa e filhos (somente os mais crescidos). Em seguida, foram chegando outros familiares e amigos.
Quando a filha mais velha, Karin, chegou com marido e filhos, Joice lembrou do "celular", tirou da recarga, guardou o carregador e esperou uma chance de botá-lo no paletó de Milton, sem que ninguém percebesse. Mas ela teve a sensação de ter esquecido de alguma coisa!
Joice, então, adotou a tática de levantar, de vez em quando, dar uma olhada e apalpada no falecido e, depois, retornar para a sua cadeira. Seria assim que, disfarçando, colocaria o celular no bolso do finado. Passava das 22 horas, quando Deise chegou com sua família, e ao abraçar a mãe, perguntou:
- E aí, mãe? Como a senhora está?
- Ah, minha filha! Foi tanta correria... E o pior é que tenho a sensação de que esqueci de alguma coisa, mas não sei o quê!
Lamentou Joice. Mais tarde, com a chegada de Analice, Eduarda e o caçula Elimário (todos com suas famílias), foi que a mãe Joice viu a chance de cumprir o último pedido do falecido. Num momento de distração de todos, entre eles mesmos, ela colocou o celular no bolso de Milton.
A noite foi longa, dolorosa e Joice sempre achando que havia esquecido alguma coisa! O amanhecer chegou junto com muito sono, cançasso e o Padre, por volta das 8 horas. Foi feito a benção, o fechamento do caixão e a marcha, até a sepultura, que era de chão. Com o túmulo aberto e rodeado por familiares e amigos, se aproximava das 9:00 horas, quando o caixão foi entrelaçado para baixar.
Entre choros e lamúrias, uma surpresa:
O CELULAR TOCOU, dentro do caixão!
- DIABOS! Era isso que eu esqueci: de desligar aquela porcaria!
Gritou Joice. Com quase todos correndo, menos o coveiro, o seu auxiliar e os seis filhos, ela teve que explicar o último pedido do defunto!
Conclusão: Abriram o caixão, desligaram o celular e o colocaram de novo, junto ao corpo, e só depois o baixaram.
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Fonte: Cemitério Irmandade São Miguel e Almas, Porto Alegre-RS. Autoria: Sérgio Gitel. Nomes preservados. Figura meramente ilustrativa.