10/12/2024
A espiritualidade ancestral é a história de nossas lutas
A presença dos Pretos Velhos e das entidades indígenas na Umbanda e em algumas vertentes do Candomblé não é meramente um resgate simbólico, mas uma afirmação poderosa da continuidade histórica e espiritual de povos que, mesmo sob as condições mais desumanas, mantiveram suas práticas, sua fé e sua humanidade. A escravidão e o g3noc1di0 indígena, que marcaram profundamente a história do Brasil, não foram apenas processos de violência física, mas tentativas de apagar culturas inteiras, aniquilando suas línguas, suas crenças e suas cosmologias. No entanto, esses povos encontraram na espiritualidade um espaço de resistência e reconstrução, que reverbera até hoje.
A visão preconceituosa do Espiritismo clássico sobre essas entidades, descritas como “primitivas” ou “selvagens,” reflete a influência de uma mentalidade eurocêntrica que dominou grande parte do pensamento religioso e científico do século XIX, quando o Espiritismo surgiu. Essa perspectiva não apenas ignora a profundidade e a complexidade das práticas espirituais afro-indígenas, mas também revela um viés de classe e de raça profundamente enraizado. Para o pensamento colonial, a cultura europeia era o ápice da civilização, enquanto as demais culturas eram avaliadas sob critérios que desprezavam suas especificidades e contextos próprios.
A afirmação de que os povos africanos e indígenas eram "primitivos" desmorona diante de qualquer análise séria. Antes da colonização, as nações indígenas da América tinham sistemas sociais, políticos e econômicos complexos, com exemplos emblemáticos como os maias, astecas e incas, que desenvolveram cidades-estado altamente organizadas, calendários precisos, práticas agrícolas sofisticadas e uma arquitetura monumental. Na África, reinos como o Mali, Songhai e Benin foram centros de saber, comércio e cultura, muito antes do contato europeu.
Mesmo assim, a violência colonial desumanizou esses povos, usando a religião como justificativa para sua submissão. No Brasil, a escravidão africana foi acompanhada pela tentativa de conversão ao catolicismo, enquanto os povos indígenas eram classificados como infiéis ou incapazes. Entretanto, a resistência cultural foi vigorosa. As práticas religiosas de matriz africana, por exemplo, reinventaram-se no sincretismo, que, longe de ser simples assimilação, foi uma estratégia para manter vivas as tradições ancestrais sob a vigilância dos colonizadores.E hoje essa pratica já é totalmente dispensavel.
A espiritualidade afro-indígena não é apenas um legado religioso; ela é também um ato político. A presença dos Pretos Velhos e dos Caboclos na Umbanda não apenas afirma a continuidade espiritual, mas reivindica a memória histórica desses povos. É uma maneira de dar voz e protagonismo àqueles que foram sistematicamente silenciados. As práticas e ensinamentos desses espíritos carregam, muitas vezes, mensagens de cuidado com a comunidade, de valorização da natureza e de justiça social – valores que desafiam a lógica individualista e predatória do capitalismo contemporâneo.
Os espaços como o Museu de Arte Pré-Colombiana, ou mesmo iniciativas locais de preservação de culturas afro-indígenas no Brasil, revelam o quão importante é resgatar essas histórias para além da espiritualidade. Esses locais são evidências materiais da sofisticação e da riqueza cultural desses povos, mas também testemunhos de uma violência histórica que ainda ressoa nas desigualdades raciais e sociais contemporâneas.
O reconhecimento da espiritualidade afro-indígena passa necessariamente pela luta contra o racismo estrutural e a defesa dos territórios e direitos dos povos originários. A destruição ambiental, os ataques aos direitos indígenas e a perpetuação de estereótipos raciais são formas modernas de colonialismo. Homenagear os Pretos Velhos e Caboclos não é apenas um ato de respeito espiritual; é um chamado à ação em defesa das comunidades que ainda sofrem as consequências da colonização.
A espiritualidade ancestral também nos ensina sobre o cuidado com o planeta e a interdependência entre seres humanos e natureza. A visão telúrica dos povos indígenas, por exemplo, nos lembra que a espiritualidade não pode ser dissociada da prática cotidiana e da preservação da vida. Essa conexão com o sagrado, expressa na relação com a terra e os elementos naturais, é um antídoto contra a visão fragmentada e exploratória que domina as sociedades industrializadas.
A celebração da espiritualidade afro-indígena exige mais do que um reconhecimento simbólico; ela requer uma reconciliação histórica que passe pelo enfrentamento do racismo, pela valorização das culturas tradicionais e pela garantia de direitos territoriais e culturais. O que esses espíritos nos ensinam, a partir de sua vivência terrena e agora no plano espiritual, é que o verdadeiro progresso humano não está na negação da diversidade, mas na sua celebração e integração.
Assim, honrar esses ancestrais é, também, uma forma de transformar o presente, promovendo um futuro onde todas as vozes e culturas sejam respeitadas como parte essencial da humanidade.
Tata Eduardo Roque
Sacerdote e Psicologo