09/12/2022
Argentina, 1985
Ricardo Darín é Julio Cesar Strassera, o promotor na acusação dos militares responsáveis pela ditadura militar na Argentina. Foi o primeiro julgamento civil de um caso militar – como a polícia, os militares tem ‘direito’ a seus próprios inquéritos internos, mas, nesse caso, não tiveram. Como disse o amigo de Julio, as vezes, alguém faz algo errado e abre uma brecha e se você souber entrar nessa brecha consegue mudar algo, consegue fazer história – não deixar que tudo fique impune, que o fim da tortura e da ameaça, o terror e a morte seja a recompensa para os que sobreviveram e pra trás ficam os corpos de quem não teve essa sorte.
Mas me antecipo, regressemos, Julio pega o processo e, começa a trabalhar sem grandes expectativas, afinal, os militares sempre saíram impunes, um deles, dias antes, tinha discursado na televisão, culpando as vítimas, falando na guerra contra a subversão. Parece o discurso de alguém que conhecemos daqui do Brasil contemporâneo e que, curiosamente, também foi militar, claro que ele não teria inventado algo assim, família e religião e costumes, tradições, sempre foram falas do fascismo, logo no início, quando designam um advogado jovem, de uma família de militares para trabalhar com ele, o Ormiga, que logo lhe explica, precisamos convencer a classe média, que sempre tende a defender os militares, como sua mãe dirá depois, a minha família, a religião, a sociedade e as pessoas me ensinaram a respeitar os militares e ninguém quer perder espaço. Eles continuavam se infiltrando no novo governo lá na Argentina.
Até que houve o julgamento, vários jovens ajudaram a defesa a coletar provas, ninguém de nome queria se envolver num caso daqueles, tão impopular, o filme demonstra muito bem a tensão, as ameaças, o ambiente inóspito de inimizade e antipatia que Julio, Ormiga e o pessoal que os ajudava. Mas seus motivos eram claros: vou herdar esse país, vejo que ninguém se importa, mas eu me importo. Eles se dividiram em grupos e se espalharam pela Argentina, pelos ‘campos’, onde se praticavam as torturas. E pediram que fossem feitas denúncias e contribuições de pessoas comuns que tivessem sido vítimas ou tivesse familiares, amigos que foram sequestrados e nunca mais vistos.
E mesmo com ameaças por telefone e por carta, inclusive para as testemunhas, o que, provavelmente, não aconteceu mais porque eles acreditavam na própria impunidade do que a escolta da polícia que, afinal, era do lado deles.
O filme consegue, a despeito da duração e, mesmo, do assunto, passar rápido, a caracterização dos anos 80, as pessoas fumando o tempo todo – mas, também, eram, apenas cinco meses pra reunir as provas para o júri e dos, cerca de 30 mil crimes, eles tiveram que escolher setecentos, das possíveis dezenas de testemunhas, eles mostraram três, a mulher que deu a luz numa viatura e não pode pegar seu bebê no colo antes de limpar o carro, o homem que foi pego por engano e uma mãe que nunca mais reviu a filha, que continuava desaparecida – ela nunca pôde sequer enterrá-la, se despedir dela. Se parece, um pouco, com o que houve com a Covid, só que no lugar do vírus, eram pessoas, deliberadamente, matando e enterrando outras. Como disse o promotor: o sadismo não é uma ideologia política, nem uma estratégica bélica, mas uma perversão moral.
Spoiler (pra quem, como não argentino, não tem ideia do desfecho do caso, afinal, não aprendemos quase nada do nosso continente nas aulas de história, assim como, misteriosamente, sabemos pouquíssimo sobre a nossa própria ditadura que, diferente da deles que foram seis anos, durou vinte e quatro) os nove acusados, Graffigna, Anaya, Lami Dozo e Galtieri foram absolvidos, Agosti pegou quatro anos e meio, Lambruschini, oito, Viola, dezessete, mas Massera, Viola e Videla pegaram perpétua. Mas a vitória da justiça e da democracia é, igualmente, grande e sem precedentes na América Latina. E essa obra é um importante memorial disso. Da autocrítica e da coragem castelhanas.
O Brasil nunca puniu os assassinos da ditadura e hoje colhemos os frutos disso. Não é a esquerda que ‘passa a mão na cabeça de bandido’ não, quem faz isso, é a querida direita burguesa que perdoou os crimes horrendos da ditadura, porque sim, eles existiram, pessoas foram torturadas, violentadas, desaparecidas, mortas. Quem homenageia bandido quando comete os próprios atos inconstitucionais é a direita, foi Bolsonaro que homenageou Ustra, um dos mais violentos torturadores da ditadura no impeachment/golpe de 2016. Espero que, dessa vez, possamos fazer diferente e dar aos fascistas uma resposta mais contundente, porém, não sei se posso me dizer otimista sem mentir, afinal, desculpem, mas eu me sinto cansada da legislação brasileira, onde mesmo a prisão perpétua não passa de trinta anos, onde assassino sai da cadeia por bom comportamento, onde muitos condenados seguem cometendo crimes de lá do cárcere mesmo ou respondem em liberdade pelas coisas mais hediondas porque podem pagar fianças.
E vida longa ao Darín, porque ele é pro cinema argentino o que o Lula é pra esquerda brasileira. E que venha a copa e nos indisponha com os hermanos – eu não me importo com futebol e só tenho carinho por eles, apesar de que, claro, do pouquíssimo que eu sei do assunto, Pelé era melhor que o Maradona. Porém, não digo o mesmo sobre o Neimar e o Messi.
Marighela do Wagner Moura com o Seu Jorge é um dos filmes que se passa no Brasil da ditadura, baseado em fatos reais.
Gabriely Santos
Jornalista/ escritora