11/08/2021
O QUE É ANARQUISMO
(Por: Winter Bastos)
“Anarquia” é um substantivo feminino que deriva da palavra grega anarkhia (an – não, arkhé – autoridade). O radical grego arkhé também dá origem a outras palavras na Língua Portuguesa, como hierarquia e monarquia.
Etimologicamente, vê-se que anarquia (assim como acracia) significa ausência de governo e representa o estado de um meio social em que inexiste autoridade. O termo “libertário” foi criado em 1858 por Joseph Dejacque (1821-1865) e retomado pelo anarquista francês Sebastien Faure (1858-1942) no fim do século 19. Hoje, libertário, ácrata ou acrata são sinônimos de anarquista. Acrata é uma variação do vocábulo original ácrata, por analogia com palavras como: democrata, fisiocrata, aristocrata etc. Cabe ressaltar, porém, que “libertário” cada vez mais tem sido entendido numa acepção mais ampla do que “anarquista”, passando a englobar antiautoritarismos em geral.
O movimento político que nasceu sob o nome de anarquista ou socialista libertário não é apenas de negação (da autoridade), mas também afirmativo de toda uma gama de valores e práticas sociais. Assim, vemos que anarquia não seria um agrupamento “desgovernado” de indivíduos.
No livro “A Anarquia”, publicado no Brasil pela Ed. Imaginário, o italiano Errico Malatesta (1853-1932) deixa claro o caráter construtivo do pensamento libertário. Logo de início trata da incompreensão sobre a palavra anarquia. Tal vocábulo comumente é entendido como sinônimo de caos. Seria o caso de se buscar outra palavra que não se desse a tantos equívocos? Segundo Malatesta, não adiantaria escolher outro termo. As pessoas entendem que anarquia significa simplesmente “sem governo”, e é verdade – ele nos escreve. O problema seria a existência do preconceito de que o governo é um órgão necessário à vida social e que, consequentemente, uma sociedade sem governantes seria vítima da desordem resultante de cada pessoa fazer “o que der na telha”. Entretanto, para os anarquistas, a humanidade não é um amontoado de indivíduos. Ela, de uma forma ou de outra, vive da associação e de ações coletivas.
As pessoas sempre estão ligadas, por isso a raça humana sobrevive até hoje. Em isolamento não se consegue nada. Segundo o libertário russo Piotr Kropotkin (1842-1921), saber viver em conjunto é um atributo humano há milênios, em todas as partes do planeta. Em seu livro “O Estado e seu Papel Histórico” (Ed. Imaginário), ele escreve que não foi o Estado (cuja existência é relativamente recente e limitada geograficamente) que garantiu a sobrevivência das sociedades. Não seria o Estado que impede as pessoas de fazerem “o que der na telha”.
Pelo pensamento libertário, são os governos, as estruturas sociais autoritárias e o Capitalismo que atentam contra uma convivência humana saudável. O Anarquismo, por sua vez, buscaria fortalecer as relações solidárias entre todas/os: justamente aquilo que pode garantir a almejada harmonia social. Nesse sentido pode-se dizer que anarquia é ordem, como já afirmava o francês Pierre Joseph Proudhon (1809-1865).
Na obra “Que é a Propriedade?” (lançada por aqui pela Editora Martins Fontes), Proudhon escrevera que a anarquia seria a ausência de senhor, de soberano: uma forma de gestão social da qual a sociedade estaria se aproximando dia a dia. Nela a consciência pública e privada, formada pelo desenvolvimento das ciências sociais, concorreria para a manutenção da ordem e para a garantia das liberdades.
Pelo livro “Que é a Propriedade?” , vemos o quanto um anarquista – como Proudhon – pode ter rigor científico na análise da realidade social. Mas o Anarquismo, apesar de sistematizado por pensadoras/es com base também em aparatos da Economia, História, Sociologia etc. não se afirma como uma ciência, diferente do pensamento marxista, o qual se pretende um “socialismo científico”.
Anarquismo é, isto sim, uma ideologia. E aqui cabe dizer que não estamos usando o sentido marxista para a palavra ideologia, entendida como falsa consciência. Diferente do Marxismo, o Anarquismo não se afirma como a “verdadeira” consciência, mas assume ser apenas mais uma estrutura ou sistema de conceitos sobre a sociedade, um conjunto de ideias, motivações, aspirações, valores. Trata-se dum ideário político de transformação social, que se expressa através de um modo antiautoritário de reflexão, de interpretação e de intervenção sobre a realidade. Constitui uma teoria revolucionária que luta contra todas as formas de exploração e opressão, historicamente opondo-se ao Estado, ao Capitalismo e às instituições religiosas. Tem a sua origem nas lutas da classe trabalhadora ao longo de quase dois séculos de busca por liberdade.
Enquanto as ideologias burguesas afirmam que a liberdade de cada um é limitada pela liberdade do outro, o Anarquismo não entende assim. Mikhail Bakunin (1814-1876) afirmava que a liberdade do próximo amplia a liberdade de cada um. Pois a pessoa só seria realmente livre, de fato e não somente na ideia, quando essa liberdade pessoal encontrasse sua confirmação no direito de todas as demais, em igualdade.
Não se poderia ser livre de forma isolada, usufruindo de bens particulares em meio à pobreza e à ignorância geral. Para o Socialismo Libertário, é impossível uma felicidade compartimentada, privatizada, enquanto há famintos vasculhado lixo pelas ruas. A miséria de um ser humano seria a miséria de todos. Não haveria segurança nem mesmo para os ricos enquanto existissem milionários e miseráveis. Da mesma forma, não haveria paz (sequer para os governantes) enquanto os governos existissem.
Segundo o Anarquismo, o fim está nos meios como a árvore está na semente. Assim, o próprio grupo político anarquista também teria que se pautar pelo princípio da liberdade que pretende fazer germinar no mundo. E o federalismo é a forma de organização que contempla essa liberdade desde o próprio grupamento militante. É um método de organização política não hierarquizada. Pressupõe a descentralização do processo de decisão e possibilita a integração dos núcleos autogestionados, em todos os níveis. Baseia-se na livre associação, havendo iguais direitos e deveres para todas as pessoas. As unidades federadas deveriam exercer seu direito de deliberar, através de delegações tiradas nas assembleias de base, orientando-se pelos princípios acordados, tendo o compromisso militante de acatar as deliberações do conselho de delegados, respeitando, assim, as decisões do órgão federativo. A rotatividade das funções e a revogabilidade das delegações são parte essencial do federalismo libertário e garantem que que ele se exerça com base em democracia direta, diferente do federalismo estatal.
Além da liberdade e do federalismo, podemos considerar como ideias chave do Anarquismo: ação direta, apoio mútuo, autogestão e outras.
A autogestão é um método anticapitalista e antiestastista de gestão sócio-econômica aplicável em todos os níveis. Caracteriza-se como a gestão dos meios de produção e organização social em benefício da coletividade, exercida desde as entidades de base, com igualdade de direitos e participação de todas as pessoas. Segundo o pensamento anarquista, a autogestão é um processo de construção do novo, ainda que convivendo com o arcaico sistema capitalista. Na atual sociedade opressora, a autogestão poderia se exercer (ainda que com limitações) pela criação de cooperativas, onde a produção se dê sem patrão, com decisões tomadas em assembleias com participação equânime de todas as pessoas trabalhadoras. Assim a autogestão demonstra sua viabilidade e potencializa lutas que apontam para a construção duma sociedade igualitária, desde já. E as fabricas autogestionadas deveriam, atualmente mesmo, se associar a movimentos sociais diversos em permanente apoio mútuo.
Apoio mútuo é entendido pelo pensamento libertário como o concurso de cada pessoa ao bem de todas (e de todas ao bem de cada uma). Seria o único estado no qual o ser humano pode atingir o maior desenvolvimento e bem-estar geral, devendo ser fomentado e praticado – a partir do presente – dentro do grupo político e nos movimentos sociais. Para Kropotkin, inclusive, o apoio mútuo (e não a luta) é o fator de evolução das espécies. Deveríamos nos solidarizar, compreendendo que a luta construtiva a ser travada não é contra nossos semelhantes, mas aquela que consiste na ação direta contra a opressão.
Ação direta é a luta social empreendida sem intermediários, recusando a atuação parlamentar, pois esta implicaria no surgimento de centros de decisão separados dos interessados. Greves, boicotes, protestos de rua, ocupações de imóveis urbanos ou rurais ociosos seriam exemplos desse tipo de prática.
A teoria anarquista contempla a luta de classes (atrito permanente e dinâmico entre segmentos exploradores e explorados) mas, diferente do Marxismo, não a concebe como o motor da história. A trajetória humana não seria predeterminada por algum esquema que transcende a ação concreta do povo. A vontade de libertação é o que moveria os seres humanos e não a simples condição material da sociedade. As contradições do Capitalismo, por si só, não levariam a sua ruína. A revolução só pode ser, para os anarquistas, resultado do esforço consciente engendrado contra os opressores e ancorado em anseios de emancipação.
E os anseios anarquistas não se limitam a questões estritamente econômicas. É o que se nota pelas formulações teóricas e pelas práticas de militantes como a anarquista Emma Goldman (1869-1940), que deu conferências sobre sexualidade e métodos contraceptivos, sendo duramente reprimida pelo puritanismo reinante nos EUA. Seu combate em prol dos direitos da mulher e pela liberdade sexual são vigorosa demonstração de que o Anarquismo desde cedo esteve livre de concepções economicistas da realidade social. O mesmo pode ser dito sobre a anarquista pacifista brasileira Maria Lacerda de Moura (1887-1945) que conferiu enorme valor a temas como feminismo, educação libertária e amor livre.
Muitos dos temas, hoje entendidos como “novos”, já eram abordados por libertários do passado. E, nota-se, o ideário anarquista permanece aberto a novas ideias, disposto a enfrentar problemas que venham a surgir na sociedade. Justamente por sempre ter tentado afastar toda forma de dogmatismo, o Socialismo Libertário se mantém vivo e dinâmico. Mas, também por isso, não construiu em torno de si uma aura de sacralidade que faça com que a intelectualidade acadêmica costume endossá-lo. Alguém já viu o Anarquismo ser citado com a mesma veneração que pessoas usam ao se referirem, por exemplo, às formulação teóricas de Darwin, Freud, Einstein ou Marx?
Bem, talvez o Anarquismo até desdenhe desses louros mundanos, afirmando como já disse um lutador social de dois milênios atrás: “Meu reino não é deste mundo”.
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