18/10/2023
Viver é um aprendizado. Mesmo criado por pais católicos, sempre questionei a fé.
Quando entrei para o mundo da medicina, em 1991, a ciência dominou o meu pensar. Ao longo do curso, Deus foi deixando de fazer parte da minha rotina, uma vez que o método científico não podia comprová-Lo. A visão do sofrimento humano, por vezes absurdo, também fortaleceu a minha impressão de que Deus seria uma ilusão. Após observar exaustivamente a miséria que as doenças graves podem causar a seres tão frágeis como nós, eu “sepultei” Deus, Jesus e o Espírito Santo (Trindade divina que eu não entendia).
“Deus está morto, se é que existiu algum dia”, falei para alguns colegas, que me olharam espantados. Mas viver também é reaprender. Mesmo Nietzsche, que também negou Deus, era um religioso, entranhado na metafísica. Eu, guardadas as proporções, também vivia esse paradoxo. Negava Deus, orando escondido para que Ele me corrigisse. Ou seja, a fé no Santíssimo estava em meu “coração”, resistindo ao meu “cérebro”. Anos passando, fui amadurecendo a noção de que o racionalismo e a fé (a ciência e a religião) não são excludentes.
Nas minhas observações diárias no consultório e nos hospitais, convivendo com pacientes com doenças catastróficas, percebi que as pessoas que tinham alguma fé em Deus viviam e morriam melhor. Voltei a rezar silenciosamente (em minha mente) com os pacientes, crentes ou não, conscientes ou não. Fazia o meu trabalho médico com base nas evidências científicas e orava para que Jesus cuidasse dos pacientes, de mim e dos meus amores (diante da agonia alheia, a empatia nos causa dor e medo). Em meio ao caos, minha alma reencontrou Deus, que estava dentro de mim, no meio de nós, onipresente e ciente. Conseguimos incríveis vitórias abraçando, ao mesmo tempo, a ciência e a fé.
Viver é um aprendizado, sim. Quando a Covid-19 nos feriu (minha esposa Tamara teve embolia pulmonar e eu, síndrome de Guillain-Barré), orávamos por nossa saúde e por nossos amados também. Quando Tamara dormia exausta pela falta de oxigênio (mesmo com oxigênio suplementar) no quarto hospitalar, onde nós ficamos isolados e juntos, eu rezava com as mãos postas sobre seu corpo, pedindo a Jesus que nos desse mais uma chance. E Ele nos deu. Muitos meses depois, voltei a atender no consultório e uma paciente me presenteou com um rosário de Nossa Senhora de Guadalupe, cuja história eu não conhecia. Guardei o mimo sagrado, sem ter a noção da importância que ele teria adiante.
Quando nossa “rapinha do tacho”, a Clara, nasceu em sofrimento (asfixia grave por nó verdadeiro de cordão umbilical), em julho de 2022, ficamos (eu e a família inteira) sem chão outra vez. Sem respirar, nossa bebê foi levada às pressas para a UTI de um hospital local, onde foi intubada, colocada em ventilação mecânica e resfriada para tentar salvar o seu pequeno cérebro (foi o primeiro caso de hipotermia terapêutica do hospital). Apesar dos esforços da equipe da UTI pediátrica, Clarinha piorou, com queda dos batimentos cardíacos, da pressão arterial e necessidade de dr**as vasoativas para mantê-la viva. O eletroencefalograma dela era caótico, compatível com uma “encefalopatia hipóxico-isquêmica grave”, ou seja, o cérebro dela estava ferido demais pela falta de sangue e oxigênio periparto. Parte da equipe médica nos falava diariamente que Clara não aguentaria viva por muito tempo ou, se aguentasse, ficaria com muitas sequelas.
Em desespero, resolvemos ir à missa para orar na Casa de Deus, já que não podíamos ficar com ela o tempo todo (o que nos destruía). Em um sábado nublado, entramos na igreja mais próxima do nosso novo lar. Para o meu espanto, a imagem que vi ao adentrar na igreja era a mesma da caixinha do rosário que eu havia ganhado um ano antes: a de Nossa Senhora de Guadalupe. Meus joelhos tremiam, enquanto comentava isso com Tamara. Quando o padre Alécio, que não conhecíamos, dedicou a missa para Clarinha, nossa família chorou abraçada, fortemente. No dia seguinte, domingo, Clara foi extubada e suas dr**as foram sendo retiradas, tendo alta da UTI poucos dias depois, sem sequela alguma, para espanto de todos, principalmente dos médicos da UTI.
Esse milagre fortaleceu minha fé em Deus, em Jesus, no Espírito Santo, em Nossa Senhora, me fazendo renascer para a fé e para a oração (sempre tão poderosa). Hoje, enquanto mostro para a Clarinha a lua e as estrelas no céu, eu agradeço por tantas vitórias e milagres, que apenas Deus pode prover. “Olha, filha! A lua!”. Ela responde “Ua!”, sorrindo imensamente, ciente de que tudo pode ser um milagre se de fato tivermos fé, seguirmos os ensinamentos de Jesus, confiarmos na proteção do Espírito Santo e de Nossa Senhora (como intercessora), se nos entregarmos integralmente a Deus. A vida é uma escola, onde fé e ciência se complementam. Tudo é obra divina.
FRANCISMAR PRESTES LEAL
53 anos, casado com Tamara Cassiano Leal, pai de 5 filhos (Francis, Pedro, Rhuan, Maria e Clara), médico pela UFSM, hematologista pela UNIFESP/EPM, plantonista da UTI do Hospital Maringá há quase 20 anos. A família participa da Paróquia Nossa Senhora de Guadalupe em Maringá.