15/11/2021
𝗢 𝗕𝗥𝗔𝗦𝗜𝗟 𝗡𝗔̃𝗢 𝗖𝗢𝗡𝗛𝗘𝗖𝗘 𝗢 𝗕𝗥𝗔𝗦𝗜𝗟
Eduardo Affonso
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Semana passada, na mansidão da tarde que caía, uma moça de 26 anos e longos cabelos lisos, depois de se despedir do filho, pegara o violão e decolara para mais um dia de labuta. No meio do caminho, tinha um fio de alta tensão. Tinha um fio de alta tensão no caminho entre a artista e seu público.
Ela era a autora e intérprete de uma das músicas mais tocadas no país em 2016. Aos 23 anos, a mais ouvida no YouTube. Aos 24, esteve à frente de Katy Perry, Beyoncé e Lady Gaga no ranking da Billboard, que mede a popularidade dos artistas nas redes sociais.
Aboletados sobre seus lepitopes, tábletes e aifones, país afora, milhões de pessoas souberam da morte de uma compositora de quem nunca tinham ouvido falar, de uma cantora que jamais tiveram vontade de ouvir. E manifestaram essa ignorância com uma mistura de surpresa e orgulho. Afinal, a moça era a musa de um gênero “menor”, a sofrência — tão menor que a palavra ainda nem consta dos corretores ortográficos.
Ela cantava amores, traições, dores de cotovelo, vinganças, voltas por cima, recaídas — com rimas fáceis e refrãos grudentos. E o Brasil não se reconhece nesse Brasil conservador que, paradoxalmente, lota estádios para ver e ouvir uma mulher que é senhora de seu desejo e não faz disso um discurso militante, doutrinário. E que foi bem-sucedida num meio machista, mas permeável ao carisma, ao talento, à tenacidade.
No dia seguinte a sua morte, Marília Mendonça atingiu o primeiro lugar (mundial) nos trending topics do Twitter. Em vida, só era notícia — fora da mídia de fofoca — quando assumia uma posição política (e se tornava alvo da direita) ou quando fazia uma brincadeira sobre transgênero (e atraía a ira da esquerda). No mais, estava protegida naquela bolha não frequentada pelos de “bom gosto”. Talvez por suas dores não terem o charme intelectual da fossa de uma Maysa, sua audácia carecer do apelo explícito de uma Anitta, seu feminismo dispensar o verniz ideológico de uma dúzia de ativistas canoras.
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“O Brasil precisa de líderes que ouçam a voz do povo”, disse, em outro contexto, um recém-chegado à maratona presidencial. Precisa, antes, que os brasileiros ouçam a própria voz. E não se envergonhem dela. E saibam que, quando derem vez ao morro, ao cerrado, ao sertão, ao agreste, ao pampa, todo o país vai cantar.
15 de novembro de 2021, no 𝗚𝗟𝗢𝗕𝗢.
"A descrença é fenômeno alheio à vontade do leitor: a abstenção é propósito." Machado de Assis (Crônicas Escolhidas)