06/11/2024
A Lealdade à Gratidão: Uma Reflexão sobre o Instinto, a Constância e a Contradição Humana
A lealdade é, ao mesmo tempo, uma virtude e um enigma. Entre seres humanos, espera-se que a lealdade seja uma extensão da gratidão, um compromisso natural que brota do reconhecimento e da retribuição. Porém, mesmo onde existe gratidão, a lealdade humana é inconstante, flutuante, sujeita a variações que vão além das necessidades básicas e se enraízam em sentimentos e raciocínios complexos — muitas vezes destrutivos. Em contraste, observamos que, nos animais, a lealdade é uma força quase elementar, duradoura e inabalável, que não se desvia com o tempo, a menos que se manifeste a doença. Dessa forma, surge uma pergunta perturbadora: será que a ingratidão humana é, de fato, uma enfermidade da razão? Seriam as contradições e infidelidades próprias da natureza humana algo que nos distancia da essência da lealdade?
A constância que encontramos nos animais, especialmente nos que domesticamos, revela uma conexão quase sagrada entre eles e os humanos. Os cães, por exemplo, são considerados arquétipos de lealdade, permanecendo ao lado de seus companheiros humanos em todas as circunstâncias. Os gatos, mais independentes, ainda assim demonstram lealdade e gratidão, que se revelam na convivência diária, na confiança do toque e no retorno ao lar. Ambos nos mostram que a lealdade, em seu sentido mais puro, não necessita de explicação racional; ela existe, persiste e se mantém, como se fosse um imperativo natural. Já para os humanos, por outro lado, a lealdade e a gratidão parecem ser virtudes flutuantes, que, apesar de existirem, são vulneráveis a impulsos e interesses pessoais.
A lealdade animal é movida por um instinto primordial, uma conexão que ultrapassa a razão e se enraíza em algo mais visceral. Nos cães, essa lealdade é quase absoluta, uma extensão do próprio ser, e não precisa de reconhecimento para persistir. A falta de reciprocidade não altera seu comportamento; ao contrário, o cão permanece ao lado do dono mesmo diante da indiferença ou da negligência. Por que, então, para os humanos, a lealdade é muitas vezes tão frágil? Em que ponto nossas racionalizações começaram a nos afastar desse tipo de constância genuína?
Para os seres humanos, a lealdade frequentemente esbarra na ambivalência dos sentimentos, no orgulho, na vaidade, na raiva e no ciúme. Mesmo que alguém expresse gratidão, basta um momento de mágoa ou ressentimento para transformar essa lealdade em deslealdade. No entanto, essa mudança de comportamento sugere que, no fundo, a lealdade humana não é uma virtude tão sólida quanto parece. Ela é, na verdade, muitas vezes uma condição temporária, presa às circunstâncias e às condições do momento, sujeita a oscilações que refletem mais o nosso interior do que os valores que defendemos. A fragilidade dessa lealdade nos humanos é, ao mesmo tempo, uma manifestação da nossa liberdade e uma contradição que, por vezes, se assemelha a uma doença moral.
Dizer que a ingratidão é uma doença pode parecer drástico, mas ao refletirmos sobre isso, percebemos que é uma enfermidade que corrói as relações. É como um vírus silencioso que transforma os sentimentos de afeição e admiração em indiferença ou, pior, em rancor. Enquanto nos animais a lealdade parece estar livre desse veneno, pois seu comportamento não é guiado por interesses ocultos ou racionalizações complexas, nos humanos a ingratidão aparece frequentemente como resultado de uma "lógica" emocional — uma lógica que, ironicamente, nos leva a comportamentos irracionais e destrutivos.
O ser humano, ao contrário do animal, não é movido apenas pelo instinto, mas por uma mistura de racionalidade e emoção. No entanto, nossa racionalidade, que deveria fortalecer a gratidão e a lealdade, muitas vezes a enfraquece. É paradoxal: possuímos a capacidade de refletir sobre nossos sentimentos, de entender a importância de manter uma postura fiel a quem nos estende a mão, mas, ao mesmo tempo, essa própria capacidade nos torna suscetíveis a racionalizações que nos afastam dessa constância. Um gesto de bondade ou de amizade pode ser facilmente esquecido diante de uma ofensa ou de um ciúme mal resolvido. Nossos instintos, ao contrário dos dos animais, se misturam à razão e produzem uma lealdade volátil, uma gratidão que se dissipa com o tempo e com as circunstâncias.
A lealdade humana também pode ser uma aparência de virtude, uma "pseudo-lealdade" que só se mantém constante enquanto favorece os interesses próprios. Esta forma de lealdade, por vezes, revela-se quase imutável, dando a impressão de um compromisso sólido, até que surgem situações que testam sua verdadeira natureza. O ciúme, por exemplo, pode transformar a lealdade em desconfiança e até em traição. A raiva e o desespero também revelam que essa constância humana é apenas uma ilusão, algo que se quebra com facilidade quando nossos interesses ou egos se sentem ameaçados. Como um espelho frágil, a lealdade humana pode se partir diante das pressões internas e externas, mostrando-se passageira, ao contrário da lealdade animal, que se mantém quase inquebrantável.
Talvez a diferença esteja na simplicidade. O animal não vive de forma calculista; ele não guarda rancor nem manipula as situações a seu favor. Quando um cão expressa lealdade, ele o faz de forma plena, sem ponderar sobre as consequências ou ganhos futuros. A conexão é genuína, baseada em um afeto sincero, que não conhece a ambiguidade da moral humana. O humano, por outro lado, é um ser que cria complexidades. Vivemos entre dilemas e emoções contraditórias, presos entre o desejo de retribuir e o impulso de negar. Somos capazes de jurar lealdade e, no instante seguinte, romper esse juramento. E, ao mesmo tempo, justif**amos nossas falhas, como se fossem traços inevitáveis da nossa natureza.
Mas seria então a ingratidão uma condição inevitável da humanidade? Ou é um defeito que deveríamos combater? Se tomarmos a lealdade dos animais como exemplo, podemos ver que a constância e a gratidão não precisam ser complexas; ao contrário, elas poderiam ser qualidades simples, duradouras e instintivas, como as vemos nos nossos companheiros de quatro patas. Assim, a ingratidão talvez não seja apenas uma falha moral, mas uma enfermidade da nossa racionalidade, uma falha na nossa capacidade de viver em plenitude e de nos mantermos fiéis ao que é realmente valioso.
E se o animal é capaz de nos ensinar algo, é que a lealdade não precisa de razão; ela pode simplesmente existir como um elo natural entre dois seres. Para o animal, a lealdade é uma extensão da sua própria natureza; ela não precisa de explicações ou condições. No entanto, para o ser humano, manter a lealdade é uma luta constante, um esforço para superar as tentações e os impulsos que nos afastam dela. Talvez a chave esteja em aprender com nossos companheiros animais, em reconhecer que, na simplicidade, reside a verdadeira lealdade e que, ao cultivar esse afeto sincero, podemos superar as fraquezas da nossa própria razão.
Ao final, a lealdade à gratidão nos aproxima do que há de mais genuíno e duradouro. Os animais, sem palavras, nos mostram o caminho da constância, e, ao observarmos essa forma de afeto, percebemos que o maior desafio da lealdade humana não é mantê-la para com os outros, mas para com a nossa própria essência, para com o nosso instinto de bondade que, por vezes, é sufocado pela racionalidade. Assim, a lealdade e a gratidão se tornam mais do que virtudes; elas se transformam em uma forma de resistência contra a nossa própria instabilidade, um esforço para transcender as limitações da nossa humanidade e buscar algo mais pleno, mais profundo, mais verdadeiro.
Por Evan do Carmo