31/05/2024
Sônia Nascimento - Que Tudo Seja
Desde meados dos anos 1990 eu e Sônia Nascimento estamos às voltas um com o outro. Eu vinha diretamente da cena rock underground de Belém daquela época, de modo que sua chegada trouxe possibilidades inéditas, traduzidas em duas bandas de enorme sucesso local nas noites viciantes (em todos os sentidos) do histórico bar Go Fish (numa época em que a sigla se resumia a três letrinhas: GLS). As bandas foram a Jardim Elétrico, e em seguida, Florbela Spanka. O som era um apanhado de referências daquela época mesmo, misturadas às de outras, especialmente os anos 1960 e 1970, que logo a imprensa batizou de “MPB eletrificada”. Estamos falando de uma época em que surgiam Lenine, Chico César e Zeca Baleiro, e Marisa Monte nos surpreendia a cada álbum - mas nós nos antecipamos a ela com nossa versão de “A Menina Dança”, que começamos a tocar no início de 1996, e Marisa lançou logo em seguida, no mesmo ano, no álbum Barulhinho Bom.
Depois de um hiato de 13 anos sem cantar em palco, Sônia retornou a Belém do Rio de Janeiro, onde morou, já casada e com um filho. Não tardou pra que me procurasse, e do reencontro, surgisse o álbum “Invento” (2015), que não apenas recolocou Sônia no radar da música independente brasileira, mas alavancou o meu projeto de Home studio, o Guamundo Home Studio, que completa 10 anos em 2024. “Invento” recebeu menção honrosa do site Melhores da Música Brasileira do jornalista Ed Félix naquele ano, e seguiu cativando ouvintes pelo seu arrojo sonoro, uma delicada escolha de repertório, e a voz brilhante de Sônia, que estava cantando melhor que nunca. Demoraria ainda mais alguns anos até que Sônia chegasse ao seu segundo álbum, e para tanto, foi preciso que a vida lhe desse um choque inesperado: a partida de seu companheiro José Esteves. Já vínhamos conversando sobre esse segundo trabalho, que Sônia queria mais pop e simples, sem a carga experimental e roqueira de “Invento”; a partir desse triste acontecimento o projeto tomou outras proporções: Sônia decidiu dedicar o álbum inteiro à sua memória amorosa.
Foi assim que uma série de canções foram compostas com seu parceiro mais frequente, Allan Carvalho, que supriu o repertório de levadas soul pop ensolaradas como “Aqui” (lançada como single) e “Nada”, do groove melancólico de “Me Erra” à claustrofobia de “Barulho” (também lançada como single). Contribuí com “Tudo”, uma balada pop apaixonada, o reggae espiritual “No Ar” (parceria com Dionelpho Junior), e “Girassóis”, que eu e Sônia compusemos especialmente para o álbum, trazendo um dos símbolos da união dela com Zé. Mas foi a faixa “Que Tudo Seja”, de Allan Carvalho e Márcio Macedo, a última canção a entrar no álbum, que acabou se tornando crucial para o entendimento de sua narrativa, e terminou por dar-lhe o título. Nela, uma Sônia emocionada, embalada por melodias em contraponto da flauta de Sonyra Bandeira e da viola de Jade Guilhon, tece um enredo de desejos auspiciosos para o amor de sua vida que se foi.
Os músicos no álbum, aliás, cumprem seu papel de modo intenso e preciso: Alexandre Lima (bateria), Rubens Stanislaw (baixo), Cláudio Costa (percussão) e eu (guitarra, violão nylon e aço, ukulele, violão 12 cordas, vocais) dos tempos de Florbela Spanka; Rodrigo Ferreira (teclado) que gravou também no “Invento”, além de Mainumy (vocais), Tista Lima (sanfona), Daniel Delatuche (trompete), Alberto Dias (tuba), Gustavo Iketani (guitarra), Tiago Belém (bateria) e Pedro Cordeiro (baixo e voz), filho de Sônia e Zé que, junto a Gustavo e Tiago, gravaram “Miragem”, catártica composição de Pedro que dá conta, a um só tempo, da imensa dor da perda, e a necessidade de cantá-la à plena voz.
A voz - essa talvez seja a substância essencial que sempre nos uniu ao longo dos anos, e que neste álbum encontra seu espaço de celebração na versão de “A Voz”, bela composição do mineiro Vander Lee. Sônia conta que foi exatamente esta canção que a resgatou de volta ao canto lá atrás, quando estava afastada. Num álbum inteiramente dedicado a uma pessoa que partiu desse plano, certamente esta canção de Vander, também falecido em 2016, nos dá logo na abertura do álbum sua profunda dimensão espiritual, emocional, transcendente, nos provando que a voz do coração que canta jamais morre.
Renato Torres
Produtor Musical
Guamundo Home Studio