17/12/2024
By: David Boio
As Palavras e os Bastidores: Quem Realmente é o Dono do Discurso?”
Tenho alguma, embora modesta, experiência na arte de escrever discursos. É uma tarefa delicada, um jogo constante entre a criatividade do redactor e as intenções do verdadeiro “dono” das palavras.
Normalmente, o processo segue uma coreografia previsível: o orador — a quem o discurso pertence — apresenta as suas ideias centrais, os objetivos e a mensagem que pretende transmitir. Em certos momentos, até nos dá a liberdade de imprimir um pouco do nosso estilo ou acrescentar argumentos próprios. Noutros, exige que sejamos quase um eco das suas convicções, sem desvios.
Depois de pronto, o discurso é revisto. É aqui que a “dança” se intensifica. O dono do discurso lê, critica, sugere alterações e, em muitos casos, exige inserir aquele que chama de “toque pessoal”. Este momento pode ser fonte de pequenas divergências: o autor pode resistir a uma alteração que, aos seus olhos, enfraquece a lógica ou a coerência do discurso. Contudo, é preciso lembrar sempre quem realmente tem o direito sobre o texto: o discurso pertence ao orador, não ao escritor.
Muitos exemplos na história ilustram bem essa tensão. Em 1963, o icônico discurso “I Have a Dream” de Martin Luther King Jr., por exemplo, foi profundamente influenciado pelo próprio orador durante a apresentação. Conta-se que a famosa frase “I have a dream…” foi uma improvisação inspirada noutra ocasião. King deixou de lado partes do texto previamente preparado e seguiu a emoção do momento, levando o público ao êxtase.
Ainda mais revelador é o exemplo do discurso de John F. Kennedy em 1961, no qual proferiu “Ask not what your country can do for you – ask what you can do for your country.” Embora essas palavras tenham sido cuidadosamente polidas por escritores, o “toque final” terá sido dele. Kennedy sabia que aquele seria o parágrafo capaz de eletrizar a audiência, então guardou o momento com maestria.
No entanto, nem sempre o escritor é avisado dessas mudanças. É aqui que entra o episódio recente envolvendo João Lourenço no Congresso do MPLA. O discurso tinha uma estrutura habitual de apresentar os seus “grandes” feitos e cumpria o papel esperado, até ao parágrafo final:
“Depois de encerrado este congresso, vamos realizar uma reunião do CC, para nos reajustarmos aos grandes desafios que teremos de enfrentar, rejuvenescendo o Bureau Político e o seu Secretariado.”
Quem conhece os bastidores da política percebeu imediatamente o peso dessas palavras. Na prática, o Presidente do MPLA anunciou que pretende afastar os seus camaradas de geração, possivelmente os únicos que poderiam confrontá-lo de igual para igual. Uma decisão forte, mas estrategicamente deixada para o último minuto.
Agora, imagine o escritor do discurso. Ele, que tanto trabalhou na coerência e na cadência do texto, provavelmente olhou incrédulo para aquela frase e pensou: “Como assim? Isto não estava no discurso!” Ali, naqueles segundos finais, João Lourenço revelou o trunfo que manteve guardado. Talvez escrito a lápis, com a sua própria lapiseira, minutos antes de entrar em cena.
Este episódio revela uma regra quase universal: o final de um discurso carrega o peso do inesperado. Os oradores compreendem que o desfecho é o momento de máxima atenção. Um momento em que as palavras não apenas encerram, mas ecoam. (Embora, no caso de Jlo, talvez tenha sido motivado especialmente pelo receio da “fuga de informação”)
Por isso, ao escrever discursos, aprendi algo essencial: a caneta final nunca é nossa. O discurso pode ser nosso em técnica, mas a palavra final é sempre do “dono” das ideias. E, às vezes, o mesmo guarda o melhor para si.
via:camundanews