26/03/2024
Júlio Emílio Braz gosta de frisar que é escritor profissional. Escreve desde que se entende por gente, de programas de humor na TV a roteiros de quadrinhos de terror a livros de bolso de faroeste. Mas foi na literatura infanto-juvenil que se encontrou. Calcula que já escreveu 400 livros sobre o gênero, como "Crianças na escuridão" e "Pretinha, eu?". Conheça mais sobre o seu trabalho e ele na entrevista abaixo.
Quando você resolveu ser escritor?
Contar a história da minha vida seria perder muito tempo e falar de minha carreira também não será tarefa das mais fáceis, pois tenho quarenta anos como escritor profissional (e gosto muito de acrescentar a palavra "profissional" ao meu ofício de escritor, pois a grande maioria dos autores tem outra profissão, que lhes garante o pão e o teto. Como sou louco, resolvi viver das vendas de meus livros desde sempre, apesar de ser Técnico em Contabilidade e Professor de História).
Quando começou a escrever livros infantis?
Leio desde que me entendo por gente e sempre gostei de escrever. Nos tempos de escola eu era o rei das redações e ganhava muitos prêmios em concursos dentro da escola onde estudava e nos concursos entre as escolas (sempre foram públicas). Nasci em Minas gerais, em uma cidadezinha chamada Manhumirim, mas vim para o Rio com meus pais aos 5 anos e nunca mais saí daqui. Inicialmente fui morar em Gramacho (no Corte oito), em Duque de Caxias, e depois acabei na favela da Maré, onde fiquei por certo tempo, passando em seguida para comunidades vizinhas, como Parque Rubens Vaz e Baixa do Sapateiro, até ir morar em Olaria e depois, no bairro de Ramos, de onde saí apenas aos 50 anos, para uma breve temporada em Botafogo e agora resido no Engenho Novo. Comecei por acaso: eu perdi meu emprego e a única coisa que apareceu foi escrever roteiros de histórias em quadrinhos para várias revistas de terror da antiga Editora Vecchi, depois para a paranaense Grafipar e para várias em São Paulo. Também escrevi livros de bolso de bangue-bangue com quase 40 pseudônimos, esquetes de humor para o programa "Os Trapalhões", na TV Globo, e finalmente me tornei autor de livros infantis e juvenis. Meu primeiro livro foi "Saguairu" e com ele eu ganhei o Prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro como autor revelação. Em meados dos anos 1990 eu comecei a publicar meus livros fora do Brasil: em espanhol no México, em Italiano e finalmente em alemão, a língua depois do português em que sou mais bem-sucedido: em 1997 ganhei três prêmios (na Alemanha, Áustria e Suíça pela tradução de meu livro "Crianças na escuridão"). Atualmente tenho quase 200 infantis e juvenis publicados e mais recentemente, comecei a publicar por conta própria também.
Qual a importância da literatura infanto-juvenil na formação da criança e do jovem?
A leitura de maneira geral (e nessa definição eu coloco tudo, livros, gibis, jornais, qualquer publicação minimamente legível), mas a literatura infantil e juvenil no particular, é de grande importância para a criação do ser pensante que cada criança será um dia. Precisamos da leitura como precisamos de um prato de comida ou de um copo de água. A palavra escrita é o sinal mais óbvio do que somos seres pensantes. A palavra guarda o que a mente muitas vezes esquece. Ela também deixa claro que ela não saiu do nada, mas antes é a mais brilhante e preciosa invenção do homem, pois é exercício óbvio da inteligência que reside em nossas cabeças e precisa ser o tempo todo provocada para que nos tornemos mais e mais inteligentes. O livro é a academia onde não exercitamos o corpo mais aquilo que torno o corpo essa máquina extraordinária, que é o nosso cérebro. Quanto mais exercício mental, mais o ser humano se tornará maior, criará tudo o que está ou ainda estará a nossa volta. Tudo o que temos começou como sonho e questionamento, ou seja, o ser humano pensou antes de tornar concreto a roda, o avião, a televisão, o telefone, o computador e até a nave espacial que finalmente nos levará e colocará em outros planetas. Ler é apostar na agilidade cada vez maior de um ser pensante.
Quais os seus temas preferidos no gênero?
Meus temas favoritos são o que as editoras chamam de temas sociais, tais como: relação entre as pessoais, os problemas da sociedade como violência, racismo, intolerância, dramas familiares. Na verdade eu escrevo sobre tudo e qualquer coisa, mas em termos de literatura infantil e juvenil eu tenho grande interesse em temas sociais. Este interesse nasceu a partir da percepção de minha própria situação no mundo em que cresci: eu vivencio ainda hoje o preconceito e o racismo que atinge pessoas negras como eu, eu vejo as dificuldades que muitos enfrentam na escola (como o bullying), no dia a dia (a violência, as relações entre as pessoas) e até na hora de amar e ser amado. Por outro lado, vejo que muitos tem medo de discutir e falar de tais temas, e achei que meus livros poderiam ajudar as pessoas a perder "essa vergonha" e falar francamente sobre os problemas que as incomodam.
Fale sobre o seu trabalho em literatura infantil voltado para as minorias.
Neste aspecto, dois livros meus são marcantes na minha produção, "Crianças na escuridão", meu favorito, que fala do dia a dia de crianças que vivem nas ruas das grandes cidades brasileiras (no caso, em São Paulo) a partir do olhar de uma menina de 6 anos abandonada pela própria mãe e que vai viver com um grupo de meninas de rua onde aos poucos de transforma em uma delas. o outro livro é "Pretinha, eu?". Ele conta a história da Bel, menina de classe média que um dia vê sua vida virar de cabeça para baixo quando uma nova aluna chega em sua escola: Vânia é negra e isso choca a alguns alunos da escola de elite onde Bel estuda, que passam a praticar bullying contra ela por ser pobre e negra. No início a própria Bel também faz isso até que começa a perceber por que Vânia a incomoda tanto: antes da Vânia chegar na escola Bel não tinha percebido que também era negra (apesar de ser bem mais clara, o que, na cabeça dela, a tornava uma "moreninha clara"). O livro fala de como Vânia enfrenta e vence o preconceito, mas acima de tudo, conta como a Bel finalmente se aceita enquanto negra, um dilema que eu também enfrentei durante muito tempo.
Por que decidiu se autopublicar?
Adoro o que faço e desde 2018, duro igual um coco por força da crise que começou dois anos antes, resolvi ir ainda mais longe e montar a minha própria editora: a Edições do Ogro. Ela é bem pequena, quase não se vê, mas serviu para duas coisas muito importantes para mim: primeiro, esquecer uma grande decepção amorosa, e segundo, realizar um antigo sonho de dominar inteiramente toda a minha produção. Quero em breve dominar toda a produção de meus livros e não apenas escrevê-los.
Qual a sua mensagem final para a criançada?
Acreditem: não há uma vida decente para aqueles que não leem. Existe apenas a sobrevivência e quem sobrevivem são os animais. Nós também somos animais, mas diferentemente de nossos companheiros na natureza, nós somos animais que pensam ou deveríamos pensar. Ler ajuda bem e quanto mais você pensa, melhor você f**a. Lendo você se torna o humano que todos nós deveríamos ser.