22/10/2022
DESPEDIDA - ISOLADO ATÉ O FIM
Quarta-feira, 19 de outubro de 2022.
Revista Piauí| Despedida| RUBENS VALENTE
O adeus ao último representante de um povo
No final de agosto, o indigenista catarinense Altair Al-gayer, o Alemão, pensou que o “índio do buraco” tivesse se mudado de novo. A cada dois anos, em média, o enigmático morador da Amazônia abandonava seu tapiri - uma choupana de palha e madeira - para erguer outro mais adiante. Desde 1996, Algayer e alguns colegas da Fundação Nacional do índio (Funai) monitoravam o homem que vivia completamente isolado na mata, perto do Rio Tanaru, em Rondônia. Nunca se soube o nome dele, nem a língua, nem a etnia, nem a idade. Estima-se que hoje teria cerca de 60 anos. O indígena estava sempre nu e se alimentava dos peixes que pescava, do milho e do mamão que plantava, das queixadas que caçava e do mel que extraía das colmeias. Por duas vezes, atirou flechas contra as equipes da Funai que tentaram uma aproximação. Queria permanecer sozinho - e assim foi.
Em 2021, com o intuito de verif**ar se o homem passava bem de saúde e não sofria ameaças de madeireiros, Algayer instalou uma câmera na mata. De tempos em tempos, examinava as imagens registradas no cartão de memória. Quando fez a última checagem, notou que o indígena surgia em cena ap***s uma vez. Caminhava usando um galho como apoio. Desconfiado, Algayer enveredou pela trilha que o “índio do buraco” gostava de percorrer para chegar a um igarapé. Não encontrou nenhum sinal recente dele. Resolveu, então, ir até o tapiri em que o indígena morava desde 2020. Aproximou-se devagar. A porta estava aberta. Mesmo de fora, Algayer percebeu que não havia fogo dentro da palhoça - mais uma pista de que algo ruim acontecera. O “índio do buraco” nunca deixava a fogueira apagar.
Mal entrou no casebre, o indigenista se deparou com um corpo. A cabeça pendia de uma rede. Suas pernas estavam dobradas na direção da barriga. Algayer lamentou: “As coisas dele em volta da rede, o fogo apagado... Que perda imensa! O sujeito lutou para viver totalmente sozinho durante pelo menos 26 anos. Sabe o que é isso? Uma trajetória inacreditável de resistência, determinação, autonomia. O último representante de um povo! Tenho o máximo respeito por ele.”
O corpo estava bastante deteriorado. Era praticamente um esqueleto, o que vem prejudicando a autópsia que a Polícia Federal ainda realiza em Brasília, para onde o cadáver foi levado. Difícil precisar a data da morte, mas Algayer calcula que o indígena já estivesse sem vida havia trinta ou quarenta dias. Há sinais de que o homem se preparou para morrer. Ele havia se enfeitado com p***s de arara e colares. Na cabeça, usava um tipo de bandana. As flechas que confeccionara - uma para cada espécie de caça - estavam num canto, reunidas em feixe. “Ele só não sepultou o próprio corpo porque isso é impossível. Estou convicto de que executou todos os rituais fúnebres de seu povo”, diz o indigenista.
A semelhança de outras choupanas que o homem construiu ao longo dos anos, a última também tinha uma cova. Daí o apelido que o pessoal da Funai deu para o misterioso personagem: “índio do buraco”. Ninguém consegue explicar a razão daquelas valas domésticas. Certamente, o indígena não as usava para dormir. Preferia se deitar na rede. Ele também abriu 53 covas em diversos trechos da mata, provavelmente com uma foice enferrujada. Os buracos podiam acomodar uma pessoa de cócoras. Alguns serviam de armadilha. O homem fincava pontas afiadas de palmeira no fundo deles e os cobria com folhas ou palha. Se uma queixada caísse lá dentro, dificilmente sobreviveria.
Tempos atrás, o próprio Algayer desabou numa das valas. Foi salvo pela mochila que trazia nas costas. O equipamento fez com que ele entalasse na boca da cova. Ap***s seus pés roçaram as estacas pontiagudas. Altair Algayer saiu de Santa Catarina em 1985, aos 16 anos, e chegou a Rondônia com os pais e cinco irmãos. Era mais uma família pobre que deixava o Sul com o sonho de se tornar produtora rural no Norte. Desde a década de 1960, o governo federal distribuía terras da Amazônia para forasteiros na tentativa de povoar a região e expandir as fronteiras agrícolas. Muitas dessas áreas estavam em territórios indígenas, o que provocou a desagregação de etnias inteiras, mortes, epidemias e confrontos violentos. Os pais de Algayer, porém, não ganharam nada do governo e tiveram que virar boias-frias em fazendas de terceiros. Foram morar num barraco de madeira. Em ap***s um ano, o futuro indigenista pegou malária oito vezes. Desiludida, a família migrou para Mato Grosso e se fixou em Alta Floresta, à época uma cidadezinha repleta de madeireiras. Algayer conseguiu emprego numa delas e logo conheceu alguns servidores da Funai. Em 1991, o indigenista Antenor Vaz o convidou para voltar a Rondônia e prestar serviço à fundação. Ele aceitou.
Cinco anos depois, Algayer e o colega Marcelo dos Santos - que já haviam trabalhado na busca dos sobreviventes de dois povos massacrados, os akuntsus e os kanoês - receberam informações sobre o indígena solitário. A presença dele na mata inquietava os madeireiros, que temiam ser flechados. Com muito custo, a dupla se aproximou um pouco do homem. Fizeram-lhe saudações e perguntas em diferentes línguas, mas ele nunca respondeu. Pior: demonstrou extrema contrariedade diante das abordagens. A Funai resolveu deixá-lo em paz e monitorá-lo de longe, como prega “a política do não contato”, que ganhou força na instituição com o término da ditadura militar.
Para os estudiosos do assunto, o “índio do buraco” fazia parte de uma etnia que desapareceu aos poucos. O extermínio teria começado durante o primeiro ciclo da borracha, iniciado no fim do século XIX, quando o interesse pelo látex motivou a ocupação desenfreada da Amazônia. A vinda de novos colonos a partir de 1960 também teria contribuído para a extinção do grupo. Há relatos de que, nesse período, muitos indígenas morreram depois de ingerir alimentos envenenados por fazendeiros da região. Isso explicaria o fato de o “índio do buraco” recusar comidas entregues por funcionários da Funai. Ele aceitou ap***s sementes de milho e mamão, que deram origem à sua roça.
Na década de 1990, sob a pressão de ativistas e indigenistas, o governo interditou uma área de 8 mil hectares para assegurar a proteção do homem solitário. A portaria foi renovada continuamente desde então. Agora, o destino da terra está em jogo. Indigenistas e líderes indígenas reivindicam que o território seja preservado para projetos educativos e o treinamento de técnicos especializados em povos isolados. Também desejam enterrar o “índio do buraco” no mesmo lugar do último tapiri, que se tornaria um memorial. Por enquanto, o corpo está na câmara fria da Polícia Federal e aguarda o resultado do derradeiro exame, o toxicológico. Talvez a causa mortis nunca seja determinada, o que acrescentaria mais um mistério a uma trajetória extraordinária - cujo fim coincide com o fim de um povo.