25/09/2022
Entre inspirações, revivals e tendências, a moda frequentemente esquece o fator humano que um desfile tem o potencial de entregar. Imagens afiadas e roupas bem feitas dificilmente substituem as aflições da convivência ou a ansiedade de um mundo cheio de crises — climática, eleitoral, de guerras. O desfile da Gucci, em Milão, retomou esse sentimento em notas altíssimas; daquele tipo histórico e privilegiado para quem estava lá. Alessandro Michele fez o show mais terno da sua passagem pela casa, até agora. Sua estética over e de imensidade de referências, já costumeira, foi toda entregue — indo de paletós coloridos a vestidos prateados, tops cropped sensuais e macacões kitsch, animal prints e momentos college. Para quem quer saber só sobre a moda, a reprise do streaming está pronta para alimentar os olhos e as lojas. Mas o que importa é o que vinha por trás, tratado com sentimento e uma pitada de humor avesso característico. Michele vinha dando dicas sobre uma fixação em cima da imagem de gêmeos e doppelgangers há meses, como quando brincou de parzinho ao lado de Jared Leto, chegando no ápice neste casting — construído em segredo, até achar quase 70 pares de modelos idênticos, que fizeram o mesmo desfile em sincronia para duas plateias divididas por uma parede. No final do show, a barreira foi levantada e o jogo de espelhos humanos revelado, dando a deixa para a fila final com os pares caminhando de mãos dadas e looks idênticos. Mais do que jogo de cena, o italiano (ele mesmo, filho de mãe gêmea), quis refletir sobre a multiplicidade da vida e dos pequenos detalhes que nos fazem únicos, mesmo que iguais. E de como podemos nos apoiar em momentos de perturbação — seja com o outro, seja dando as mãos para nós mesmos, reforçando nossas ideias de construção de identidade (uma das bases de seu trabalho à frente da Gucci). As estampas Fuori! remetem a um movimento gay marxista dos anos 1970, enquanto os Gremlins brincam com a serialidade e quebram a seriedade, assim como a trilha com Marianne Faithfull declamando uma música das gêmeas Olsen ainda crianças. No ar, sobra ainda espaço para a provocação: o que é cópia na moda de hoje?