31/12/2023
Pensei, nos meus primeiros passos em direção à criação desse texto, que ele deveria ser uma oportunidade de remexer um pouco na minha frustração com relação a esse mundo, esse mundo contemporâneo cheio de absurdos e contradições e paradoxos em que vivemos. Um mundo em que muitos navegam desenfreados numa (quase) inevitável onda tecnológica e imediatista que me dá, via de regra, vontade de gritar: ‘Pára que eu quero descer!!’ A complexidade que a tecnologia representa pra mim e pra muitos me faz pensar nas formas mais naturais, mais nuas, mais cruas de vida. E, num segundo momento, no teatro, minha velha e resiliente paixão. Teatro no seu sentido mais artesanal.
Além disso, me ocorre que perdemos às vezes (muito mais que à vezes, na verdade) e até mesmo com certa frequência, a perspectiva da realidade das coisas e da realidade que muitos vivem. Anos atrás, eu e meu amigo ator, rapaz de um talento vivo e sagaz, logo depois de terminarmos nossa Graduação em Artes Cênicas, levamos nossa peça de teatro aos arrabaldes dos arrabaldes da Grande São Paulo, dentro de um programa cultural intitulado ‘Arte nas Ruas’, que contratava artistas para se apresentarem em diversas locações mais precárias da cidade. Íamos com o meu carro da época, abarrotado de tranqueira: um Monza de um marrom meio acinzentado, velho, pesado e temperamental. Greta era o seu nome. Greta era rouca, e se metia nas ruas e estradas como doida, soltando fumaça e anunciando sua chegada por onde quer que passasse. O espetáculo chamava ‘Um dedinho de prosa’, e muitos achavam que ele já começava com a nossa nunca discreta chegada, a bordo de Greta. Não tínhamos um texto para memorizar ou seguir, tudo acontecia ali, no momento do espetáculo - havíamos criado a ideia, a história, os personagens, e com base nisso improvisávamos a cada apresentação, e cada uma era uma. Tínhamos só um breve roteiro na cabeça, nada mais. Algumas vezes a performance tomava rumos inesperados devido à interação espontânea com a audiência, mas sempre acabávamos nos virando e reencontrando o fio da meada. O tema girava em torno de um casal que havia deixado a roça, o interior, e caído na dura urbanidade da cidade grande, com o intento de melhorar de vida. Ele, um homem espirituoso e astuto. Ela, a esposa inocentemente maliciosa. Ou maliciosamente ino-cente.
Numa daquela série de apresentações, demoramos demais pra chegar, era longe… bem longe. A paisagem ia f**ando mais feia e mais dolorosa à medida que avançávamos em direção ao nosso destino. E roda chão, roda chão, até que avistamos um vilarejozinho de construções que eram quase favelas, todas tristemente enfileiradas na frente de uns barrancos de terra quase vermelha, e à beira dum riacho muito poluído, escuro, e de um odor fétido de sair correndo. A gente chegou, perguntou pra alguém se era ali mesmo, rezando pra que não fosse, mas era. A criançada, muitas quase sem roupa nenhuma e descalça, ia chegando com um sorriso aberto e curioso no rosto ao ver a gente descarregar o carro e trazer para o espaço nossas tralhas, minha sanfona, panos, chapéus, objetos, toda a ‘badulacaiada’, como a mãe de uma criança disse. Fizemos nossa peça debaixo de sol quente, com muito suor e dificuldade, mas estimulados pela fome de diversão e atenção daquelas pobres crianças pobres. Nunca vou me esquecer do sorriso delas. Mas também nunca vou me esquecer daquele cheiro impiedoso e infernizante e do alívio que foi acabar a peça e sair daquele lugar… E aquelas famílias viviam ali, dia e noite. Dia após dia. Sem trégua. Aquilo era muito difícil de digerir. Inacre-ditável. Continuo, até hoje, pensando na necessidade de um mundo possível. Um mundo possível não pode ser realmente possível enquanto houver esse tipo de disfunção, isso que eu presenciei na minha via-sacra teatral pela periferia da Grande São Paulo daqueles anos e que ainda existe, e não só lá, mas em muitos outros lugares desse planeta. Um mundo essencialmente desigual, injusto e fora de equilíbrio.
Foi uma das experiências mais tocantes que eu tive não só de teatro, mas de vida - nossa batalha e esforço sobrenatural para permanecermos ali e concluirmos o nosso trabalho eram quase tão grandes quanto o prazer sem tamanho de dar alguma razão para aquelas crianças se divertirem. Foi o período em que senti o teatro mais vivo em mim, o período mais intenso e visceral de prática teatral da minha vida, de um aprendizado que se deu num outro nível, quando vivi com mais profundidade, refleti e passei a entender melhor a relação entre ator e platéia. Aquilo era teatro por excelência.
Sempre pensei que o verdadeiro artista cria com o que quer que tenha nas mãos, na frente dos olhos, dos sentidos; com o que quer que esteja vivendo ou experienciando. Tudo é pano pra manga, tudo é comida pra imaginação, tudo vira história. Tudo evolui e se transforma no processo de criação.
A arte enaltece, libera, liberta. Ela também questiona, desafia, denuncia, provoca. A arte cura. É isso o que eu vi nos olhos daquelas crianças: o breve e aparentemente eterno momento de cura enquanto elas nos assistiam, vibravam, sorriam, gritavam, gargalhavam. E sonhavam… com um mundo possível.
Que os seres vivos desse planeta tenham a chance de viver num mundo possível e acolhedor nesse novo ciclo de doze meses que se aproxima. E assim por diante.