23/11/2023
Segundo a psicanálise, as recordações de infância não são simples reproduções fiéis do passado, mas sim reconstruções criativas que sofrem a influência do presente, dos desejos, das fantasias e dos mecanismos de defesa. Freud chamou essas recordações de “lembranças encobridoras”, pois elas encobrem ou substituem outras lembranças mais importantes ou perturbadoras, que foram recalcadas no inconsciente. As lembranças encobridoras são formadas por um processo de compromisso entre as forças que tentam manter o esquecimento e as forças que tentam resgatar a memória. Assim, elas revelam e ocultam ao mesmo tempo aspectos da vida psíquica do indivíduo.
Freud ilustrou esse conceito com um exemplo pessoal: ele se lembrava de ter visto, quando tinha cerca de dois anos e meio, seu irmão recém-nascido pendurado em uma árvore pelos pés, como um morcego. Essa lembrança, porém, era uma fantasia baseada em uma cena que ele viu em um livro infantil. Freud interpretou essa fantasia como uma expressão de seu ciúme e hostilidade em relação ao irmão, que lhe tirou a atenção e o amor dos pais. Essa lembrança encobridora também continha elementos simbólicos, como a árvore (representando a mãe) e o morcego (representando o falo).
Freud também aplicou esse conceito em seus estudos sobre artistas, como Leonardo da Vinci. Ele analisou uma lembrança que Leonardo relatou em seus escritos: quando ele era bebê, um abutre lhe abriu a boca com a cauda e lhe tocou o lábio superior. Freud interpretou essa lembrança como uma fantasia originada de sua curiosidade sexual infantil e de sua homossexualidade latente. O abutre seria um símbolo da mãe, que lhe proporcionou o primeiro prazer oral, e a cauda seria um símbolo do falo materno, que ele desejava possuir.
Portanto, as recordações de infância podem ser consideradas como fontes valiosas para a compreensão da personalidade e da história de cada indivíduo, mas também como produtos da imaginação e da elaboração inconsciente. Elas podem ser acessadas e interpretadas através da análise psicanalítica, que busca resgatar os sentidos ocultos e as relações entre o passado e o presente.