03/04/2017
O ESTRAGADOR DO IDIOMA
Ao
Mia Couto
— Adiminiministrador
O pai endireitava o português: todo suado de idioma:
— Diz-se: administrador. Agora repita isso…
O miúdo resumia os erros, reboava a palavra, soava ainda um aprendedor de palavras. Mas o miúdo não se sentia assim. Quando desacertava seguidamente a mesma palavra, procurava um sentido específico para a palavra linguisticamente errada. E expelia aos amigos.
Certo dia saiu com o pai para o mercado, iam comprar algumas roupas para ninar o verão. O pai proibira o miúdo de pronunciar palavras deslinguadas. Valia-lhe mais o silêncio dele que um português mal produzido. Costurado desqualqueramente.
Chegaram no mercado, entraram na primeira loja de munhés procuraram camisetas para o miúdo. O miúdo visitou a beleza adormecida duma camiseta cor-de-rosa e gritou:
— Quero aquela camiseta cor-de-mulher!
Todos que estavam na loja ficaram pasmados, cor-de-mulher!? E o miúdo não fez a abreviada questão de aponta-la. (Re)gritou, taciturno:
— Pai, quero aquela camisa cor-de-meninas…
Os adultos sabem muita coisa ao ponto de não saber pequenas coisas. Cor-de-meninas!?
Uma senhora apreciava tecidos com a filha na idade de deflagrar o tempo. A filha da senhora apontou o equívoco por se decifrar. O pai do miúdo reendireitou:
— Ahhh! Diz-se cor-de-rosa…
Todos ganharam alma para risos. Apenas um velho, cheirando alma do mundo, que apreciava chapéus, não demonstrara tensão de riso. Talvez de admiração. Comungou presenças na enchente em volta do miúdo que arrancou peitos e azulou gargalhadas na loja dos monhés.
— Que invenção, miúdo! — Ministrou afeição
O miúdo corrigiu o velho:
— Quis dizer: Que erração, miúdo!
O pai ficou chateado com o desvio de padrão da língua do miúdo. Percebia que cada vez mais a coisa crescia, aumentava de forma de erro. O pessoal na loja, saciava-se de tanto rir: erração!?
O velho lividamente, foi soprar ao pai:
— Quero estes estilhaços de língua do teu filho!
— Estou a lutar para ele melhorar
— Está bem assim, quero com essas falhas de fabrico!
— Falhas!? Isso está mais para crime de idioma.
— Esses crimes são eles que amadurecem a língua.
O pai do miúdo admirou o velho, que falava com tanta convicção. Perguntou-lhe:
— O que queres fazer com ele?
— Não sabes!?
— Não, Senhor…
— Teu filho é um artista primitivo. Desses que erram para inventar. Seus genes insistem-lhe a errar, ele deveria ter nascido antes de existir a língua. Ele deveria ter inventado o idioma.
O pai, por impulso de confiança entregou o filho para morar dentro daquele velho. Aquele era o destino, aquela era a vocação do miúdo, como dizia o velho: a poesia é um outro modo de pensar que está para além da lógica que a escola e o mundo moderno nos ensinam. Sem a arrogância de as tentarmos entender. Apenas com a ilusória tentativa de nos tornarmos irmãos do universo. O velho chamou o miúdo para arruarem. O qual perguntou, extasiado:
— Onde vamos?
— Vou te textar em mim…
O pai do miúdo estranhou: textar!? Que loucura de palavra era aquela!
Já caminhavam os dois, conversando em linguagem anacrónica que para muitos era desuniversal, estranha, errada e sem fronteiras possíveis, talvez para lá dos sonhos, quando o pai fez-lhes parar:
— Qual é o teu nome, mesmo!?
— Sou Mia Pouco. Mas podes me chamar de Mia Louco. Se quiseres…
O pai começou a rir, e quanto mais ria, nascia um mundo nas costas da literatura. Parida pelo erro da línguatura.
Conto: Otildo Justino Guido
Pintura: João Timane
Homenagem ao Mia Couto (escritor moçambicano)