24/04/2020
Carta de um jovem dentista à comunidade odontológica:
Cada dentista com quem conversei me contou sobre a ansiedade que caminha junto a esse clima de incertezas trazido pela COVID19. O medo desse futuro incerto é legítimo e a realidade é que não temos noção nenhuma de como a nossa profissão estará daqui a um ano. O que sabemos é que essa pandemia vai impactar quase todos os mercados mundiais, modificar as relações sociais e que levaremos bastante tempo para estabilizarmos nossa profissão.
O papo de que voltaremos a uma normalidade no atendimento odontológico e de que as coisas se acertarão sozinhas é uma falácia de quem não entende o impacto deste momento no mercado da nossa profissão e está propenso a transformar tudo em conversa motivacional. Esse é um momento muito propício para nós, dentistas, tomarmos as rédeas de um mercado que há muito tempo não está em nossas mãos. Os convênios e suas remunerações que beiram o absurdo, franquias odontológicas, que industrializam o atendimento das classes sociais mais vulneráveis com suas metas mensais de procedimentos e uma classe de profissionais que sabe o tamanho do seu impacto na vida de seus pacientes, mas que não tem uma formação adequada para criar o próprio mercado ou para gerir a própria carreira.
Cada dentista tem o conhecimento necessário em biossegurança para cuidar de seus pacientes durante a pandemia, afinal trabalhamos diariamente com esse tipo de cuidado. O problema não é exatamente o a capacidade de atuação, mas a logística necessária nesse momento. Quando refletimos sobre as atitudes necessárias para o atendimento seguro aos pacientes e ao profissional como o maior espaçamento entre consultas, a utilização de todos os EPIs (maior parte deles descartável), as normas de desinfecção e esterilização dos instrumentais, a quantidade de clínicas odontológicas públicas e privadas que atendem vários pacientes em um só ambiente dividido em boxes, percebemos que aumentaremos (e muito) os custos por procedimento e que isso inviabilizará a nossa atuação profissional no cuidado prestado às classes B, C, D e E, que estarão com o poder de compra muito reduzido pela crise que passamos. Além disso, o mercado ainda não conseguiu atender à demanda pelos equipamentos de proteção individual necessários no combate à COVID19, refletindo em preços altíssimos e indisponibilidade desses materiais para compra pela classe odontológica. Vale lembrar que estocar esse tipo de material para uso em clínicas odontológicas nesse momento da pandemia pode trazer problemas sérios para os profissionais da saúde que estão na linha de frente da luta contra o novo corona vírus. Como mudar esse quadro será uma interrogação diária na luta de cada dentista que encara com seriedade sua profissão.
O cirurgião-dentista que hoje se forma na universidade traz em sua bagagem um extenso conhecimento técnico e biológico, mas nenhum conhecimento que lhe empodere sobre sua atuação dentro do mercado ou que lhe dê embasamento na hora de construir a própria carreira. Enquanto continuarmos formando apenas dentistas técnicos, que não sabem investir, se comunicar, empreender, gerir, liderar, vender e motivar seus pacientes iremos continuar reféns dos ridículos honorários de convênios, de clínicas odontológicas que desvalorizam o trabalho dos próprios dentistas e de pacientes que não entendem o quanto a saúde bucal é um serviço contínuo e importante e não um produto a ser comprado. Ao dentista que está formando eu digo: a odontologia é uma das profissões mais amplas que existem e não está resumida a dentes. Amplie seus horizontes ou vai sucumbir às adversidades. Ao dentista que formou há alguns anos, eu dou um conselho: se reinvente, entenda o novo mercado, acredite na importância da sua profissão e na transformação que agora é necessária para que possamos continuar transformando a vida dos nossos pacientes através do sorriso.
Não temos nenhuma ideia de como será o mercado odontológico em 1 ou 2 anos, mas uma coisa é certa: precisaremos de muitas mudanças se quisermos nos manter como profissão. E essas mudanças não vão chegar se não nos unirmos. Novas políticas econômicas e sociais podem ser criadas para auxiliar a profissão através de articulação política, de tomar em nossas mãos a responsabilidade por criar caminhos, dar ideias e agregar nossa visão integral e completa da odontologia ao mercado que esqueceu que é de saúde e transformou nosso trabalho em produto. A articulação entre profissionais, conselho federal e entidades de classe é a única forma de conseguirmos assumir gradualmente a responsabilidade pela nossa atuação. Somente a união enquanto profissão vai ser capaz de nos levar pra fora do poço que a economia pós-COVID19 se tornará. Valorizar o profissional é educá-lo para que este eduque o seu próprio público e reflita na mudança da percepção da profissão pelo paciente e esse papel é de todos os profissionais. Dê ideias, converse com seus colegas, sugira projetos ao seu CRO, vá a uma reunião da classe e participe da movimentação política em torno da sua profissão. Não dá mais pra reclamar da odontologia e não fazer nada a respeito. Ao não assumir a responsabilidade na mudança, você a delega a quem não se importa com você.