29/11/2021
Jornal Raio de Luz
Especial Castelo
Novembro 2021 | Nº 539
Conversas do Castelo
Parte IX
- Meu amigo, os dias estão cada vez mais curtos e a esplanada, mesmo com estas mantinhas que colocam à nossa disposição para nos mantermos mais quentes e agasalhados, convidando-nos a uma maior permanência, não são suficientes para estarmos confortáveis fisicamente. Parece que vamos mesmo ter de rever e pensar onde possamos continuar a ter estas conversas.
O Sol na sua trajectória em direcção ao Solstício de Inverno, vai fazendo a sua aproximação a Norte, aí, nesse ponto preciso do seu caminho, será o dia mais curto e a noite mais longa, muitas vezes a mais fria. Aqui sentados, nem damos conta desta particularidade dos movimentos relativos dos dois astros, Sol e Terra, a nossa grande fonte de energia e de luz, não se põe sempre no mesmo ponto deslizando, progressivamente, dia após dia no horizonte.
De qualquer forma, atento a estas condições, continuo a dizer-lhe que já não se aconselham as nossas conversas por aqui, primeiro porque nos expomos demasiado ao frio e ao vento, que por aqui é muitas vezes cortante, depois, temos cada vez menos tempo de luz. Vamos já pensando numa alternativa, ali mais abaixo, em Santana ou Corredoura, na Cotovia não estou a ver nenhum local. – constatei.
- Tem toda a razão, embora reconheça que num qualquer local mais abrigado, podemos perder esta energia que aqui sentimos. – sorri abanando a cabeça.
Vamos pensando nesse local onde se possa observar o mar, a charneca ou a serra. Lá para a Primavera, quando os dias começarem a ter uma maior expressão, voltamos aqui. Afinal de contas, é aqui que gostamos de estar. Ainda aqui sentimos presença do velho Rafael e dos seus inúmeros amigos, gatos. Uma boa sala com uma lareira podia igualmente ser um local propicio para a continuação destas nossas conversas.
Há atrasado, tínhamos f**ado no progressivo abandono deste espaço. Na realidade o património arquitectónico e espiritual aqui fundado e erigido, há mais de um século que se verif**a o seu derruimento e o decréscimo do culto à Nossa Senhora do Cabo. Por outro lado, constatamos que se consolidou, de sobremaneira, o culto na margem norte. O que é de estranhar dado os elevados investimentos que foram realizados, progressivamente ao longo dos séculos, nesta infraestrutura são o indicador preciso que este culto tem nas paróquias da margem Norte.
- Custa a acreditar que todo este investimento tenha sido realizado dessa forma, quase unicamente pelas paróquias da margem norte! – exclamei admirado.
- Sim é verdade, mas não podemos olhar estas questões com a visão simplista e deturpada da realidade actual, da nossa realidade e de fazemos das mesmas, sem atendermos às condicionantes e aos factos que em cada momento e em determinada época foram determinantes, para o desenvolvimento desta região cujo o foco ou centro era Lisboa, não só como capital do Reino de Portugal, mas como capital política, administrativa, onde tudo ali se decidia, aliás como ainda hoje o é, mas igualmente, era a sua capital espiritual.
- Tem toda a razão, é mesmo importante esse olhar focalizado na época. Um facto importante, normalmente não atendido ou mesmo esquecido, talvez mesmo ignorado, é que a divisão territorial da igreja com a existência de uma diocese abaixo de Lisboa, entre a capital e Évora não existia. As paróquias da margem norte e da margem sul do Tejo, estavam todas enquadrados pela mesma entidade espiritual, com sede em Lisboa. Esta situação especif**a, vem estabelecer uma divisão aparentemente, insignif**ante, mas que obviamente assume uma relevância importante na dinâmica de todo o trabalho da igreja.
- É verdade, tem toda a razão não existia a actual divisão territorial da igreja com a existência de uma diocese sediada em Setúbal e que ainda por cima, nem sequer coincide com a divisão administrativa que existe do Distrito de Setúbal. Não nos podemos esquecer deste factor, inegavelmente, relevante que nem sempre os interesses de uns e de outros, poderão ter sido entendidos ou melhor ainda, levados em linha de conta. Não pense que tudo isto poderia ter sido melhor planeado e organizado, levado em consideração. Como o meu amigo sabe, isto das divisões e das rupturas, pacif**as ou litigiosas, muitas vezes as litigiosas deixam marcas, porque, nem tudo estava bem esclarecido relativamente à criação da nova Diocese de Setúbal, quanto mais aos seus santuários.
- Santuários? – interrompi com estranheza.
Então, houve problemas com a limitação geográf**a da nova Diocese, não me lembro de ter ouvido, ou lido nada sobre isso, também já lá vão algumas décadas, confesso.
- Na realidade foram deixadas certas coisas por esclarecer, além da diocese não coincidir com a divisão administrativa civil do distrito, também ficou, ao que parece, um pouco indefinido a quem pertencia o Seminário de Almada, a Igreja e o Santuário do Cristo Rei, com toda a quinta envolvente desejando o Patriarcado de Lisboa, continuar a ter a jurisdição material e espiritual sobre todo este património, um património que se revelava bastante importante para a nova Diocese que, para além das receitas e jurisdição do Santuário de Cristo ainda ver-se-ia privada de um importante local de formação dos seus novos quadros.
- Que coisa tão estranha, mas resolveu-se? – interrompi intrigado.
- Resolveu-se porque o primeiro Bispo de Setúbal, D. Manuel Martins, que boa memória nos deixou, não esteve com demoras e paninhos quentes e tratou logo, a devido tempo, esclarecendo tudo o que havia para esclarecer relativamente aos limites da Diocese e ao património que deveria pertencer por direito próprio e absolutamente necessário ao seu desenvolvimento.
Já percebe que as questões deste Santuário nunca estiveram na ordem do dia dos problemas da Diocese pese embora o Santuário se encontrasse numa degradação permanente onde até ocupações selvagens tenham existido. Essas questões, ligadas a indefinições relativamente à propriedade, mantiveram durante décadas este conjunto arquitectónico impar num reprovável abandono.
- Bom, mas parece que isto tudo está a levar um outro caminho com um programa de reabilitação ligado ao turismo, qualquer coisa desse género, li em qualquer lado mas parece que também, como de costume nestas coisas envolto em polémica.
- Lá iremos numa próxima conversa que esta já vai longa, a noite não tarda e ainda tenho algumas coisas para lhe ler deste velho livro de apontamentos da Confraria de Nossa Senhora do Cabo, se não perdemos o fio à meada e convém mesmo, através destas leituras compreender quanto do esforço e empenhamento foram aqui colocados pelo Círio dos Saloios.
Dizendo isto, retirou da pasta de cabedal um livro que pelo aspecto já devia ter alguns anos, livro certamente de alfarrabista, que de biblioteca não sai dela e começou a procurar as marcas que aparentemente deveriam corresponder a passagens que desejava ler.
- Ora vamos lá ver. – continuando a folhear o lido e relido livro. Não me vou perder com pormenores e nomes de quem há muito nos deixou, compreende o que eu quero dizer. Em 1739, no princípio do giro de Benf**a lê-se aqui, “Esmeram-se em fazer uma obra grande e foi a armação da igreja de que tanto se precisava, para o que concorreram todas as freguesias, porém só a de Benf**a deu logo, pela primeira vez trezentos e noventa mil setecentos e cinquenta Reis”... “E importou toda ela um conto trezentos oitenta e dois mil trezentos e quarenta e três Reis.”
- Mas isso devia ser uma pequena fortuna. – constatei admirado. E tudo investido aqui na igreja.
- Deixe-me continuar por favor e depois terá tempo para as suas apreciações. Bom, o ano de 1740 foi a vez de S. Domingos de Rana. Nesse ano não se fizeram obras, o custo da armação ainda se fazia sentir, porém “em várias miudezas despenderam-se quarenta e dois mil e quatrocentos Reis” e “a freguesia de Benf**a deu… cento e sessenta e oito mil seiscentos e trinta Reis”.
Apontavam tudo aqui sabe, oiça isto; “Determinou-se então por acordo, que a armação estivesse fechada com três chaves, das quais o Juiz teria uma, outra o Escrivão e outra o Tesoureiro, donde se conservasse a prata e com a dita armação se não pudesse nunca emprestar para outra parte.”
Em 1741, São João das Lampas esteve à frente da organização, mas despenderão cento e sessenta mil e novecentos e quarenta e oito Reis mas a freguesia de Benf**a participou igualmente com “ vinte e cinco mil quatrocentos e quarenta Reis”.
Em 1742 foi a vez da freguesia de Nossa Senhora da Purif**ação de Monte Lavar, organizar o giro e escreve-se aqui; “Comprou-se neste ano um Órgão, e fizeram-se outras coisas, em que se gastou trezentos trinta e dois mil centos e cinquenta Reis. E para isso deu a Freguesia de Benf**a sessenta e cinco mil quatrocentos e oitenta Reis”.
E o que dizer desta clarividência; “…nesse ano se fez um acordo no mesmo sítio do Cabo do Espichel a 6 de Maio, em que se assentou entregar-se a chave do Órgão ao Capelão, a fim de que os outros Círios também se servissem dele; dando por isso a sua competente esmola, sem que desta entrega da chave resultasse direito algum, ou posse para o futuro ao dito Capelão, ou aos seus sucessores; porque em todo e qualquer tempo que os Oficiais do Círio que servissem nesse ano quisessem a chave para a levarem, ou entregarem a outro, livremente o fizesse: o Capelão as aceitou, assignando disso hum termo. Aprendam daqui os modernos a não deixar criar raízes a posse de alguém; para o que, todos os anos deverão tomar conta de tudo e de todas as chaves, e depois da posse entregarem-nas a quem melhor lhe parecer, ou ainda aos mesmos que as possuirão, mas com o conhecimento de que quem lhe entrega a administração e só quem tem o direito e domínio; e se as chaves podem estar na mão de hum homem a quem se paga, muito melhor conservadas são as cousas pelos Festeiros, que devem zelar tudo como seu, pois lhe tem custado o seu suor. Faço esta advertência aos vindouros, para acautelarem os perigos em que vão caindo os modernos, por isso se tem perdido muitas regalias, e tem havido demandas, o que não sucederia se conservassem sempre os seus antigos direitos.”
Em 1743 foi a vez de Nossa Senhora de Belém de Rio de Mouro. “Fizeram-se dez painéis para a Igreja de Nossa Senhora do Cabo, com molduras entalhadas e douradas. Puseram-se quatro Santos em quatro nichos. Mandaram-se fazer três alvas, três amitos, três cordões, duas toalhas dos aItares, outra do Altar Mor, e outra para o Altar de Nossa Senhora do Cabo com suas rendas, toalha para o Lavatório, e outras coisas mais, em que se despendeu seiscentos cinquentas e cinco mil setecentos e noventa e cinco Reis”. Nesse ano, “…deu a Freguesia de Benf**a junta com o Mordomo do Bodo Manoel Luiz, e de Cera Francisco Duarte, sessenta e sete mil cento e vinte Reis.”
Em 1744 a organização do giro pertenceu a Nossa Senhora d'Ajuda de Belém. “Fizeram-se neste ano duas moradas de casas novas, e uma que se comprou a João Baptista Antunes, Armador, no que se despendeu novecentos oitenta e dois mil e quarenta e um Reis”. Nesse ano, deu a Freguesia de Benf**a …“quarenta e cinco mil e duzentos Reis”… “Um devoto, chamado Pedro Hebent, da cidade de Lisboa, mandou fazer umas casas para seu cómodo, e de seus parentes, e nas suas faltas para os Romeiros.
Outro devoto, por nome Pedro Mina, de Belém, mandou fazer outras casas para seu cómodo, e na sua ausência para os Romeiros.”
- Só nesse ano foram construídas várias casas pelo Círio dos Saloios de acordo com esse registo. – interrompi empolgado.
Em 1745 foi a vez de Ascensão e Ressurreição de Cascais organizar o giro. Pagou-se a João Jorge o resto que se devia das casas, em que despenderão cento e dezoito mil setecentos e cinquenta e seis Reis. Deram os Mordomos do Bodo de Benf**a… vinte e nove mil e seiscentos Reis.
1746 foi o ano de Santo Nome de Jesus, de Odivelas organizar o giro. “Fez-se no Arraial do Cabo um sobrado e uma loja da ponte do Sul, em que se despendeu por mão de João Jorge duzentos setenta e sete mil setecentos e setenta e sete Reis. Contribuíram para isso os Mordomos do Bodo de Benf**a... com vinte e nove mil e vinte Reis”
Em 1747 calhou a S. Martinho de Cintra. “Fez-se um cortinado de damasco, em que se gastaram cento e cinquenta covados. Concertaram-se as casas. Preparou-se o Órgão, e pagaram-se todas as dividas, em que se despendeu novecentos trinta e três mil cento e quarenta e sete Reis… Deu, o Mordomo do Bodo de Benf**a… vinte e seis mil seiscentos e vinte Reis.”
1748 foi o ano de S. Pedro do Almargem do Bispo. “Despende-se com seis castiçais de prata novos, e outras coisas mais setecentos trinta e sete mil e noventa e nove Reis. Deram os Mordomos do Bodo, e Cêra da Freguesia de Benf**a treze mil oitocentos e vinte Reis. Deram de esmola o Juiz…, o Escrivão…, o Tesoureiro…, e o Procurador…, um carro triunfante, que importou duzentos doze mil e oitenta Reis.”
- Seis castiçais de prata! – sublinhei admirado. Esses ou foram para o rol dos roubos realizados pelo exército napoleónico comandado por Junot ou pelo D. Miguel que tinha que arranjar sustento para os seus ideais absolutistas.
- Em 1749 foi a vez de Santo Estevão das Galés. “Concertaram-se as casas, e outras coisas mais… despendeu seiscentos trinta e cinco mil oitocentos e oitenta Reis. Deu o Mordomo do Bodo da Freguesia de Benf**a… vinte e quatro mil Réis.”
1750 foi a vez de Nossa Senhora da Conceição da Igreja Nova. “Só despenderam vinte mil quinhentos e cinquenta Reis. Deu a Freguesia de Benf**a pelo Mordomo do Bodo... e uma devota do mesmo lugar, cinquenta e sete mil e vinte Reis.”
Por último, 1751 foi a vez de S. João Degolado da Terrugem. “Neste ano se mandou fazer a Imagem que anda nos Círios, pois que até este tempo só havia uma Bandeira. Fizeram-se capas de seda, e outras miudezas, em que se despendeu duzentos vinte e sete mil trezentos e quarenta Reis. Deram os Mordomos do Bodo da Freguesia de Benf**a… dezoito mil quatrocentos e vinte Reis.”
Bom fico por aqui, já chega de exemplos e de montantes, julgo tê-lo, definitivamente esclarecido que andou séculos a investir por estas bandas e era bom que isso fosse reconhecido por nós que herdamos um património e demoramos décadas a dar-lhe o merecido valor. Gratidão e obrigado não nos f**ava nada mal.
- Olhe, estou mais que esclarecido, levo muita matéria para reflectir e a noite já nos faz companhia, portanto como se costuma dizer, está na hora de fechar o livro.
António Marques
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1 Memória da Prodigiosa Imagem da Senhora do Cabo, Lisboa, na Impressão Régia, Segunda Parte, 1817, pág. 3 a 13