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Prova de Vida Registos partilhados, e às vezes perplexos, da semana

Um dos jogos da minha infância chamava-se Correio Infantil, era da Majora e tinha um carimbo que permitia marcar os enve...
01/03/2024

Um dos jogos da minha infância chamava-se Correio Infantil, era da Majora e tinha um carimbo que permitia marcar os envelopes e os selos de brincar como se estivéssemos numa estação de correios. Ir aos correios a sério era, até há uns anos, uma coisa que fazia com prazer, mesmo que tivesse de esperar um bocado pela minha vez de ser atendida. Enquanto esperava, estava atenta ao som do carimbo, às vitrines com novas tiragens de selos, às conversas. Entretanto, os correios foram privatizados, como se fosse boa ideia tornar privado um serviço tão fundamental. Ia ser uma maravilha, disseram, porque tudo o que é privado funciona bem, disseram, e vai ser muito melhor, com menos tempos de espera, novos “produtos”, serviços mais ef**azes. O que se viu foi o tamanho das filas a aumentar, o número de funcionários a diminuir e, em muitos locais do país onde os CTT asseguravam uma série de serviços essenciais, o que se viu foram as próprias estações de correios a desaparecerem. Há novos serviços, lá isso há: os CTT, agora, também são um banco, reservando-se pelo menos um dos balcões da estação que frequento para esse departamento. Depois, há os livros, espalhados por vários escaparates. Entre a oferta bibliográf**a, há promessas para acabar com a diabetes ou a depressão, instruções para ser rico e feliz, manuais para “deixar de se preocupar” (!), romances de desconfiar e alguns livros de receitas assinados por pessoas que aparecem na televisão, para além de várias variantes de coisas de Auschwitz, esse filão editorial que vemos colonizar as prateleiras sem que a vergonha nos engula. E fora da estação de correios, no departamento de entregas de correspondência e afins, o problema continua, com cartas e encomendas a demorarem demasiado a chegar ao destino (algumas a não chegarem) e com carteiros e carteiras a fazerem rondas demasiado extensas para o tempo que lhes é dado (e, desconfio, sem remuneração à altura). Quando vierem privatizar o que ainda sobra de saúde e educação públicas, a ver se não nos esquecemos dos serviços que pioraram ou desapareceram, nem dos CTT da aldeia, que fecharam porque “não se justif**ava”.

1 Março 2024

Quem decide a programação televisiva e as abordagens a uma questão tão essencial para o nosso futuro comum como a campan...
23/02/2024

Quem decide a programação televisiva e as abordagens a uma questão tão essencial para o nosso futuro comum como a campanha eleitoral para as próximas legislativas está de parabéns: conseguiu transformar o debate político num circo futebolístico e encher o espaço público de discussões sobre quem ganhou ou perdeu os debates, quem foi mais assim ou mais assado, tudo menos a discussão dos programas políticos que nos vão decidir o futuro. Afinal, a lamentação sobre o populismo crescente eram só lágrimas de crocodilo, porque quando chegou a hora h, em vez de ponderação e rigor houve gasolina na lareira das audiências. Debates curtos, demasiado curtos para obtermos respostas sobre as muitas áreas essenciais, seguidos de horas de comentário em tom demasiado parecido com o comentário futebolístico, com gente a atribuir pontos à performance dos candidatos e candidatas como quem procura o melhor jogador em campo. Neste registo, a agressividade é valorizada pelos “júris desportivos”, assim como as fintas em torno dos factos e até as entradas de pés juntos contra as canelas do adversário. Só que não estamos a ver um jogo de futebol e devíamos estar a discutir programas políticos e não a ver quem marcou o melhor penalti. Na verdade, o mal também vem daí, do ter-se transformado um jogo em batalhas semanais das quais parece depender o equilíbrio do país: não depende, é só um jogo, por mais que gostemos dele. Já das deputadas e deputados que vamos eleger no dia 10, com base nos programas que defendem, depende muita coisa. A quem decide a linha programática das televisões, f**a um conselho: vão ver a série Newsroom e aquele episódio em que a redacção do telejornal arrisca tudo, à revelia da administração, num debate-entrevista com candidatos feito como deve ser. Não há cá gente a falar ao mesmo tempo, nem possibilidade de não responder às perguntas colocadas e muito menos espaço para dizer mentiras sem contraditório. Se fizermos isto bem feito, é menos provável andarmos todos deprimidos a queixar-nos da má qualidade da democracia e do debate político. E, às tantas, pode ser que os números da abstenção desçam, o que era um belo serviço prestado à comunidade.

23 Fevereiro 2024

Tenho encontrado em diferentes contextos pessoas de alguma idade que, ao perceberem que as suas faculdades auditivas já ...
16/02/2024

Tenho encontrado em diferentes contextos pessoas de alguma idade que, ao perceberem que as suas faculdades auditivas já não são o que eram, adoptam a surdez selectiva como desculpa para não ouvirem o que não querem ouvir. Sempre me fascinou essa artimanha e desde que uma otite se instalou no meu ouvido direito, há vários dias, tenho experimentado a possibilidade de a aplicar. Imagino que resulte melhor se não tivermos o som de um aspirador a ressoar nas cavidades cranianas; ainda assim, é ef**az. Em tempo de programas televisivos desenhados para entreter o circo e dar gás ao lume, aqueles que nas grelhas da programação se chamam, não se entende porquê, debates eleitorais, tem sido mesmo útil. Quando começo a ouvir certos líderes partidários cantando loas ao mercado da educação ou da saúde, e outros gritando alarvidades e mentiras sem que moderadores os confrontem com os factos, o aspirador aumenta o volume e não me deixa ouvir mais nada. A propósito, antes da otite, quando isto era só uma dor de garganta, fui ao Centro de Saúde. Não tinha consulta marcada, apareci para a consulta do dia, fui atendida. Uns dias depois, quando a otite se instalou, era fim de semana, pelo que fui às urgências num Centro de Saúde que não é o meu, mas onde há consultas para utentes de uma vasta área da cidade. Uma vez mais, fui atendida. É verdade que a estúpida da otite ainda não se foi embora, mas isso não é culpa do SNS. Como estou com a audição diminuída, deixei de ouvir as pessoas que vão para a televisão gritar que o SNS implodiu. Já não me enervo nem grito para o ecrã, tentando que do outro lado ouçam que o SNS continua a funcionar, apesar de os mesmos que agora se queixam lhe terem sugado parte considerável de recursos para o privado, ou que quando uma coisa não funciona bem temos de a arranjar, e não substituí-la por uma solução mil vezes pior. Nada disso. Agora fico sentada em modo zen a ouvir o meu aspirador cerebral e a desejar que quem quer privatizar os serviços públicos possa conviver não com um aspirador, mas com uma betoneira industrial alojada nos dois canais auditivos. Ainda assim, não seria tão sonoro como alguns debates.

16 Fevereiro 2024

Aviso aos heróis que prometiam esvaziar a 2ª circular à chapada quando uma série de activistas climáticos cortaram essa ...
09/02/2024

Aviso aos heróis que prometiam esvaziar a 2ª circular à chapada quando uma série de activistas climáticos cortaram essa estrada: há neste momento uma série de estradas cortadas por agricultores em protesto. E não é só em Portugal, pelo que podem espalhar heroísmo por essa Europa fora, repondo a circulação a que, diziam por aí, temos direito. Bem sei que heróis destes costumam falar mais baixo quando os objectos do seu heroísmo são maiores do que eles ou elas, mas apesar disso queria deixar o aviso. É só para me entreter um bocadinho e fingir que acredito que essa raiva toda contra os activistas climáticos era mesmo porque a estrada estava cortada. Sei que não era, mas às vezes um bocado de cinismo permite-nos levar melhor os dias. Ultimamente, até acho que um bocado de cinismo pode ser a diferença entre perder o tino de vez ou continuar a tolerar o mundo. Por exemplo, quando ouço pessoas surpreendidas porque vamos começar a racionar a água no Algarve (sem revelarem surpresa pelo facto de irmos fazê-lo no consumo doméstico e não nos campos de golfe), já não sou capaz de dizer pela enésima vez que era mais do que óbvio que isso ia acontecer, que basta estar com atenção às notícias dos últimos anos e aos avisos da ciência, ou que em muitas partes do mundo não há água em condições para ser consumida e que o Algarve não vai ser o único sítio do país a passar por isso. Prefiro abrir muito os olhos e exclamar um “Não!” sentidíssimo, seguido de qualquer coisa como “nunca imaginei que as emissões de gases com efeitos de estufa e a poluição generalizada tivessem consequências; quem poderia imaginar, se nunca nos avisaram?”. Também funciona com coisas do quotidiano: “Como é que um miúdo que passa cinco horas por dia a olhar para um ecrã desde que era pequenino e lhe punham o tablet à frente para comer melhor tem problemas de concentração?” Ou em andanças pela cidade: “É espantoso que não se consiga andar a pé em condições em Lisboa, afinal, são só 370 mil carros por dia numa área de 100 quilómetros quadrados.” Não dá para fazer isto todos os dias, até porque é capaz de ser sintoma de desistência existencial, mas há momentos em que tem mesmo de ser.

9 Fevereiro 2024

Cheira a bagaço de azeitona no centro de Lisboa. Não sei se é mesmo bagaço, mas sei que o mau cheiro provocado por indús...
02/02/2024

Cheira a bagaço de azeitona no centro de Lisboa. Não sei se é mesmo bagaço, mas sei que o mau cheiro provocado por indústrias é comum em vários lugares do país e que só agora que se sente em Lisboa passou a ser um problema a investigar. Investigue-se, pois. Há outras coisas a cheirar mal por aí e essas, por mais tinta que gastemos, talvez só se percebam daqui a uns anos, quando a História fizer as suas sínteses e conseguir definir os contextos. Uma pena que vá ser tão tarde... Na Rua do Benformoso, entre o Martim Moniz e o Intendente, há quem tente espalhar o cheiro a medo. Gente que acredita na supremacia da pele branca e que, por ter noção do estúpido que é acreditar nisso, inventa rumores infundados sobre ameaças que parecem não ter relação com a cor da pele, mas têm. Têm sempre. Dizem que vem aí uma suposta dominação islâmica, coisa que andaria a ser congeminada no silêncio das mesquitas. Não vale a pena explicar a esta gente que não há relação entre religião (ou ausência dela, já agora) e vontade de fazer mal, e esse é o verdadeiro ponto, ou ir buscar os crimes cometidos em nome divino por tanta gente (cristãos, por exemplo). Qualquer criança consegue perceber isso, mas estas pessoas não conseguem. É mesmo possível que nem os números sirvam para argumentar, mas vamos a eles: o último Census, de 2021, revelou que em Portugal há 80,2% de católicos. O segundo grupo maior, com 14,09%, é o das pessoas sem religião. Seguem-se os evangélicos, cristãos também, com 2,13, depois outros cristãos com 1,04, as Testemunhas de Jeová (0,72) e os Ortodoxos (0,69). Tudo cristão ou sem religião, até aqui, e já somamos 98,87% da população. Os seguidores do Islão são 0,42 %, e ainda há praticantes de outras religiões não-cristãs (0,28) e hindus (0,22). Isto são dados do último Census, mas claro que estas alimárias não sabem o que é o Census e, se já tiverem ouvido falar, hão-de dizer que é uma invenção, porque resolvem o mundo com esta paranóia de tudo ser falsif**ado por um “eles” que nunca sabemos a quem corresponde. Pior do que o bagaço é o cheiro a esturro, sobretudo mental. E neste caso sabe-se bem de onde vem.

2 Fevereiro 2024

No início desta semana celebrou-se o Dia Mundial da Escrita à Mão. Nunca tinha ouvido falar de tal efeméride, e pareceu-...
26/01/2024

No início desta semana celebrou-se o Dia Mundial da Escrita à Mão. Nunca tinha ouvido falar de tal efeméride, e pareceu-me mais uma daquelas urgências de dedicar todos os dias a um dia mundial de qualquer coisa, mas gostei da ideia. Escrever à mão é um gesto cada vez menos cultivado e até há estudos sobre o que se perde com esse abandono, sobretudo a nível do funcionamento do cérebro e das ligações entre neurónios. Não sei se estes estudos convencem alguém a retomar o hábito, mas não preciso de ser convencida. Continuo a escrever em cadernos, todos os dias. Quase todos os textos que escrevo por razões profissionais começam com folha e caneta. Alguns acabam assim, outros passam entretanto para o computador, onde é mais fácil estruturar parágrafos e contar caracteres, essa exigência absoluta quando se escreve para a imprensa. Quase tudo o que escrevemos por aí, e-mails, mensagens e redes sociais, são apenas zeros e uns, código binário que se configura com o aspecto de um texto mas que é matéria virtual. À medida que as maquinetas e os servidores onde todo este mundo virtual se arruma se tornam obsoletos, substituídos por outros, boa parte dessa escrita esfuma-se. Há uns anos, li uma notícia sobre a doação de Salman Rushdie a uma universidade norte-americana: o escritor ofereceu três discos rígidos contendo várias versões de romances seus, para além de correspondência, artigos guardados, textos inacabados e outras anotações relevantes quando se trata de conhecer o acervo de um escritor. Um desses discos, constatou-se entretanto, tinha-se estragado e o seu conteúdo era irrecuperável. É verdade que os arquivos em papel também sofrem acidentes, podem arder, perder-se numa inundação, ser roubados, mas isso são acidentes, não o processo normal de evolução de um sistema que tem de estar permanentemente a actualizar-se com conversões de ficheiros, desaparecendo facilmente no éter. Escrevendo à mão, os cadernos f**am cá e quem vier a seguir que lhes dê um destino. Umas vezes, perder-se-ão igualmente, outras permitirão guardar alguma memória para quem anda por cá e precisa de ferramentas para ir entendendo o mundo.

26 Janeiro 2024

Gabriel García Márquez, que além de escritor também assinou várias reportagens, dizia que o jornalismo era a melhor prof...
19/01/2024

Gabriel García Márquez, que além de escritor também assinou várias reportagens, dizia que o jornalismo era a melhor profissão do mundo. Não sei se todos os meus camaradas de ofício estarão de acordo, mas suponho que é cada vez mais difícil olhar para isto sem uma enorme ambivalência. Sim, é preciso entusiasmo para se fazer jornalismo, aquela vontade de ir lá, ver, saber, contar a outros e a outras, confrontar, esclarecer. Quando é possível fazer tudo isso, quando há condições para, pelo menos de vez em quando, fazer tudo isso, recebendo em troca um justo pagamento pelo trabalho feito, o jornalismo é realmente a melhor profissão do mundo. A parte do justo pagamento há muito que se esfumou, mas os últimos anos acrescentaram outras falhas e já são tantas que não é incomum acordarmos de manhã e perguntarmo-nos porque raio continuamos a fazer isto. Por estes dias, decorre o 5º Congresso de Jornalistas, ali no São Jorge, em Lisboa. Escrevo antes do início dos trabalhos, mas antecipo: vão ser quatro dias de muito debate, de reencontros memoráveis, de ideias que ainda assim continuam a surgir e a procurar modos de acontecerem, mas suspeito que serão também quatro dias de profunda depressão. Entre a disponibilização gratuita de notícias e outros conteúdos jornalísticos na internet, a queda dos hábitos de leitura (não resolvida, ao contrário do que anunciaram tantos gurus, pela internet, ainda que alguns leitores tenham migrado para o ecrã), a glorif**ação das leis do mercado (onde cabem os baixos salários e a precariedade, mas também muitas decisões editoriais perfeitamente disparatadas, porque o que importa é ter “clicks”) e as ameaças à democracia que já passaram dos pezinhos de lã, estamos mais ou menos atolados. Este “estamos” não se refere apenas a quem faz do jornalismo ofício, porque esta profissão é uma das que tem a particularidade de implicar toda a gente. Sem jornalismo não há democracia e isto não é uma frase batida, é mesmo assim. Cá estou, no congresso, a tentar que as nuvens carregadas se dissipem, mas a desconfiar do muito que nos vai chover na cabeça nos próximos tempos.

19 Janeiro 2024

Em Dezembro, numa acção de protesto que cortou o trânsito no Viaduto Duarte Pacheco, em Lisboa, mais de uma dezena de ac...
12/01/2024

Em Dezembro, numa acção de protesto que cortou o trânsito no Viaduto Duarte Pacheco, em Lisboa, mais de uma dezena de activistas contra a crise climática foram detidos pelas forças da autoridade. Na esquadra, várias activistas foram mandadas despir pela polícia, que as obrigou a agacharem-se e a exibirem as partes mais íntimas do seu corpo. Este é um procedimento absolutamente excepcional, usado quando há fortes indícios de haver armas ou outros objectos perigosos escondidos, coisa que obviamente não acontecia nesta situação (e que raramente acontece, diga-se), até porque estes protestos nunca foram violentos. Além disso, tanto homens como mulheres possuem orifícios corporais onde podem esconder armas... Ora, neste caso, apenas as activistas mulheres foram obrigadas a despir-se e a humilhar-se desta forma, o que, se mais argumentos não houvesse, seria suficiente para perceber que se tratou de um brutal exercício de abuso de poder, uma forma de autoritarismo pidesca que não pode ser tolerada num sistema que se diz democrático. Se agentes da PSP têm este tipo de comportamento, que raio de moralidade lhes resta para que olhemos para si com confiança e noção de protecção? Nenhuma. O problema cresce quanto damos uma ou duas voltinhas pelo espaço público onde se comenta a notícia de que o Ministério da Administração Interna abriu inquérito a estes agentes: os comentários são dignos de um bando de súbditos de uma qualquer majestade fardada e com crachá de ditador, com muita gente a defender o que aconteceu na esquadra e a clamar por medidas ainda mais fortes. A noção de como funciona um estado de direito parece ter derretido com o aquecimento climático e o mais certo é que as muitas pessoas que fizeram comentários deste calibre não percebam isso. Ou, pior, que estejam cheias de vontade de viver debaixo de uma bota cardada, sem outra lei que não a da força, sem mecanismos que assegurem aquelas coisas básicas que compõem uma democracia. Entre as catástrofes climáticas e a brutalidade de um estado autoritário, não sei o que lhes cairá na cabeça primeiro, mas infelizmente não cairá apenas ali.

12 Janeiro 2024

O Alentejo é uma maravilha, já se sabe, e fazer uma lista de todas as coisas extraordinárias que por lá se encontram, da...
05/01/2024

O Alentejo é uma maravilha, já se sabe, e fazer uma lista de todas as coisas extraordinárias que por lá se encontram, da comida ao sotaque, seria tarefa para muitos parágrafos. Deixo-a para outro dia e atenho-me ao montado, esse prodígio em forma de eco-sistema que, tendo sido criado por mão humana, há muito se revelou espaço fértil para a biodiversidade e habitat privilegiado de uma série de práticas e manifestações a que podemos chamar de culturais, envolvendo técnicas agrícolas, hábitos gastronómicos, expressões musicais e por aí fora. Sobreiros e azinheiras com fartura, oliveiras com muitos anos marcados no tronco, restolho e murta com abundância, alguma água aqui e além. Com tempo e silêncio, vão aparecendo os animais, alguns entregues à tarefa de pastar para a engorda, outros selvagens, como aquela águia-imperial que talvez vislumbrasse algum texugo que os meus olhos não foram capazes de detectar. Em compensação, os meus olhos têm registado, nos últimos anos, uma variação acentuada na paisagem alentejana: aquelas oliveiras que se erguiam com imponência, troncos grossos e copa abundante pontuando o montado, foram dando lugar a umas oliveiras raquíticas que aparecem multiplicadas por milhares, alinhadas como se fossem arbustos e ocupando áreas cada vez maiores. Num portal dedicado à agricultura leio que esta forma de olival intensivo é mais produtiva e dará um azeite de maior qualidade, mas não encontro nada que explique que produtividade é essa além do lucro imediato. Bem sei que quem vive do que a terra dá precisa de comer, nenhuma discussão sobre isso, mas uma cultura intensiva que vai comendo hectares e hectares de montado será mais vantajosa a longo prazo? E para quem é a vantagem, para os pequenos e médios produtores de azeite ou para as grandes corporações cujo nome se vai vendo aparecer ao longe, como se um letreiro merecesse a relevância de uma árvore na paisagem? Para os consumidores, nem pergunto qual é a vantagem: basta tentar comprar uma garrafa de azeite. A bem da justiça poética, devia dar-se outro nome àquelas micro-árvores que andam a engolir o montado – uma oliveira é outra coisa.

5 Janeiro 2024

Tento fugir de balanços. O calendário é uma ficção, é o que digo para me convencer da inutilidade do gesto, mas depois l...
29/12/2023

Tento fugir de balanços. O calendário é uma ficção, é o que digo para me convencer da inutilidade do gesto, mas depois lembro-me que as ficções são das coisas mais relevantes que temos na vida e sempre que se aproxima o fim de Dezembro, não escapo a olhar para trás e a imaginar o que aí vem. O problema, este ano, é que olhar para trás é um exercício doloroso e confuso. Fazemos disparates todos os anos, provavelmente desde sempre, mas 2023 arrisca-se a ser aquele ano em que ao ar de fim de mundo que andamos a respirar há um tempo se juntou o descalabro da diplomacia e das leis – escritas e não escritas – que iam criando alguma ilusão de futuro. Desde Outubro que andamos a assistir em directo a uma chacina à qual boa parte das instituições internacionais (a parte que podia fazer alguma diferença) reage com aquele compromisso com que saudamos conhecidos que raramente vemos: “temos de combinar qualquer coisa”. Se e quando combinarmos, já não haverá muito a fazer a não ser a contabilidade dos mortos e da destruição. Claro que andamos há muito a fingir que não há uma ocupação em curso na Palestina, e que o governo israelita não instiga os colonatos a expandirem-se sempre que possível, muito para lá das zonas acordadas internacionalmente, sem que ninguém o conteste no plano diplomático. E claro que discutir este tema é mergulhar num s**o de gatos de onde normalmente se sai aos gritos ou com um rótulo pouco abonatório na testa. A chacina, no entanto, devia ser mais consensual, não? Se permitimos que um governo cerque um território e mate todas as pessoas que lá estão dentro, presas, sem comida, água, aquecimento, já não estamos a falar de um conflito. E se continuamos a fingir que isto não caminha para a terra queimada e pejada de mortos que antecederá uma ocupação plena, já não estamos a falar de distração. Para balanços do ano, somos capazes de ter defraudado todas as expectativas que alimentávamos sobre a nossa grandeza enquanto espécie. Quanto a olhar para a frente, neste momento é capaz de ser um exercício à beira do abismo. Sofrendo de vertigens, não é uma coisa que me apeteça muito fazer. Acho que dispenso o novo calendário, desta vez.

29 Dezembro 2023

Boa parte das conversas que ouvimos no café baseiam-se em opiniões. As opiniões, por seu lado, deixaram de ser coisas qu...
22/12/2023

Boa parte das conversas que ouvimos no café baseiam-se em opiniões. As opiniões, por seu lado, deixaram de ser coisas que achamos a partir de dados, e que cruzamos com as nossas crenças pessoais, e passaram a ser coisas que achamos unicamente a partir dessas crenças, esquecendo ou ignorando os dados. Ainda assim, vale a pena tentar a pedagogia e fornecer os dados, a ver se alguém lhes pega. O mais recente relatório anual do Observatório das Migrações apresenta dois dados muito relevantes: o primeiro, indica que em 2022 os imigrantes contribuíram com 1861 milhões de euros à Segurança Social portuguesa e só beneficiaram de cerca de 257 milhões de euros, o que dá um saldo de 1600 milhões; o segundo mostra que os estrangeiros representaram 13,5% dos contribuintes do sistema de segurança social. Devia ser suficiente para cobrir de vergonha a cara das pessoas que adoram o bode expiatório do costume, aquele do “vêm para cá roubar-nos os empregos e nem pagam impostos”, mas não é, porque nunca nada será suficiente e sobretudo porque esse discurso é apenas uma forma polida de disfarçar a xenofobia. Numa notícia do Público, a directora deste relatório, Catarina Reis Oliveira, afirma que “sem os imigrantes, alguns sectores económicos entrariam em colapso”. Conhecidos os dados, a conversa no café mantém-se. Há quem jure que ser imigrante é o ideal, porque o Estado paga todas as despesas com luz, água e gás, e há quem assegure que os comerciantes que também são imigrantes não pagam impostos. Delírio total. É um desespero e obriga a uma disponibilidade permanente para interromper conversas e fornecer os dados, com muita calma e muita pedagogia. Infelizmente, quase nunca resulta, porque quem diz estas coisas não se baseia em nada concreto, mas apenas na sua desconfiança perante quem é estrangeiro. Se, além de estrangeiro, não for branco, a desconfiança aumenta. Apontamos esse facto, que assume que o dono do restaurante indiano ou a senhora chinesa da frutaria são, obviamente, mais culpados de fuga ao fisco do que aquele homem francês bem parecido que abriu uma croissanterie... Dizem-nos logo que não são racistas. E depois vão levantar a pensão.

22 Dezembro 2023

A voz de Gal Costa é inimitável, sublime, eterna. Um concerto de homenagem podia correr muito mal, mas isto era outra co...
15/12/2023

A voz de Gal Costa é inimitável, sublime, eterna. Um concerto de homenagem podia correr muito mal, mas isto era outra coisa. No palco do Music Box, em Lisboa, P**a da Silva e os Rastafogo interpretaram o álbum “Índia”, de 1973, esse mesmo, o da capa com aquela tanga vermelha e tanta pele à mostra que a ditadura militar brasileira o censurou (e passou a ser vendido embrulhado num plástico azul), sendo que a censura só foi levantada em 2015! Não vale a pena regressar ao passado por saudosismo, mas revisitá-lo para reclamar aquilo que nele já se anunciava futuro é um gesto importante, porque nos mantém aqui, de pés fincados no mundo, fazendo da memória testemunho, usando as histórias que partilhamos para ir inventando caminhos. Foi isso que aconteceu neste concerto: o disco passou por ali inteiro, voz e novos arranjos, um “Milho Verde” a chamar Zeca Afonso com forró e bombos ligados ao músculo cardíaco, um “Relance” a chamar Caetano e os arranjos originais de Gil, essa dupla que é obra-prima, um “Índia” a lembrar que os bem pensantes da década de 70 não aguentaram que Gal gravasse uma canção sertaneja que consideravam brega, e que Gal não quis saber e fez o que lhe apeteceu e deixou os bem pensantes brincando com as suas lombadas pouco usadas, sem saberem que o mundo, o que nos faz vivos e juntos, não quer saber de polícias mentais (as que olham de lado para o que acham brega ou as que proíbem capas porque têm pele a mais). No disco de 1973 e no palco de 2023, a mesma fome, a curiosidade insaciável por quem somos e o que raio escondemos e mostramos e procuramos. Com uma pandilha de luxo em cima do palco, essa convocação transformou-se em festa e aquilo que Gal cantou tão bem foi agora reclamado por P**a da Silva, sabendo que 1973 já lá vai e que se “Índia” continua a soar-nos cá dentro, abanando veias e orgãos, é porque o que ali se cantava nunca deixou de ser matéria para nos moldar. Para nos moldarmos, como nos aprouver, fazendo e desmanchando à medida do que sonhamos, não para que alguém o faça por nós. Gal Costa havia de ter gostado desta versão do seu “Índia”, com a pele bem visível, essa pele que tanto aborrece ditadores e candidatos a tal.

15 Dezembro 2023

Estou a f**ar um bocado desajustada do mundo, ou então é da idade, mas ultimamente passo demasiado tempo a olhar para os...
08/12/2023

Estou a f**ar um bocado desajustada do mundo, ou então é da idade, mas ultimamente passo demasiado tempo a olhar para os carros em Lisboa e a pensar que temos mesmo de ser colectivamente estúpidos. Há dias, no Príncipe Real, seis da tarde de um sábado, o trânsito parecia a 2ª Circular em hora de ponta. Era mesmo imprescindível enfiarem-se nos carros? Desajustada ou velha, não consegui evitar olhar para aquela rua e imaginá-la de outro modo, os eléctricos a passarem, os peões a andarem e a não terem de fazer gincanas nas passadeiras porque os carros pararam lá em cima, toda uma ideia de cidade que não cabe no cérebro (feito de pneus?) de quem governa a autarquia. Deve ser um mecanismo de dissociação, este de focar um plano e apagar tudo o que não devia lá estar, e às vezes tenho medo que isto vá longe demais, mas depois inspiro e o cheiro a escapes assegura-me que não há risco de acreditar na minha dissociação. Em Lisboa, quando se tenta discutir o tema dos carros, a conversa costuma acabar com “o meu direito a andar de carro”. Nem dá para a chegar à ocupação do espaço público e ao facto de não nos conseguirmos mexer numa cidade atafulhada de popós, cada um ocupando no mínimo 10 m2. O amor aos carros é tanto que em muitos bairros lisboetas (em todos?) qualquer conversa sobre mais jardins ou mais ruas pedonais acaba sempre por perder quando se percebe que isso vai “roubar” lugares de estacionamento. Isso é que não! Bem sei que fora de Lisboa e do Porto esta questão tem outros contornos. Há dias, no Público, uma reportagem mostrava que a falta de transportes fora das grandes zonas urbanas torna impossível uma existência sem carro. Nestas cidades ou no resto do país há, no entanto, uma coisa comum: a falta de vontade de resolver a questão dos transportes públicos. A única forma de resolver a questão é, pasme-se, construir ou renovar as infra-estruturas e colocar os transportes a funcionar. Não é preciso conquistar Marte. Depois lembro-me da linha da Beira Alta, fechada para obras desde Abril de 2022 – o encerramento era por nove meses, pelo que o melhor é irmos ali dissociar um bocadinho. Pode ser que apareçam unicórnios sobre carris.

8 Dezembro 2023

Costumo ser contida na expressão das emoções. Com o Ken Loach, já terei gasto uns quantos pacotes de lenços de papel em ...
01/12/2023

Costumo ser contida na expressão das emoções. Com o Ken Loach, já terei gasto uns quantos pacotes de lenços de papel em diferentes salas de cinema, ao longo da vida. Não é aquele choro fácil dos filmes delico-doces, é mesmo uma coisa estruturante. Quando vi o “Terra e Liberdade” , saí da sala com a cabeça transformada num aquário e demorei algum tempo a perceber o que tinha acontecido. No cenário da Guerra Civil de Espanha, e do lado do perdedores, o que tinha acontecido era um confronto entre uma esperança desmedida e o autoritarismo de encerrar o debate numa visão cristalizada de um suposto mundo mais justo – à paulada ou ao tiro, se fosse preciso. Eu estava com os perdedores, mas seguramente com os da ala da esperança desmedida, e saí do cinema com a certeza de que levaria um tiro ou uma paulada. Fui vendo filmes do Ken Loach desde então e os temas foram mudando, mas esse cultivo da esperança por entre o desespero esteve sempre lá. Há dias, fui ver “O Pub The Old Oak”, ambientado no velho bar de um bairro inglês da classe operária onde os mineiros de há uma geração foram todos atropelados pelo “mercado a funcionar” e f**aram sem emprego, sem reformas dignas e com o corpo destruído pelo trabalho duro. Agora que chegam alguns emigrantes, refugiados de guerras como a da Síria, os habitantes desse bairro cumprem a eterna litania dos mais pobres e dos que viram o Estado virar-lhes as costas: achincalham os que ainda estão piores e despejam-lhes a culpa em cima. Loach não cede a romantismos com final feliz e a tensão entre todas estas pessoas é grande, mas há uma chama qualquer que não arrasta toda a gente para o lodo do ódio sem lhe dar outras coisas para a mão. O que se chora aqui é a esperança: uma mistura de pessimismo, pelo difícil que é mantê-la, e de comoção nascida da confiança absoluta na humanidade. É contraditório, claro, e isso é capaz de aumentar a emoção (e de nos fazer a vida mais difícil, diria). Ken Loach tem 87 anos. Não sei se quero ou não chegar a essa idade, mas se isso acontecer, independentemente das mazelas, quero muito ter metade da esperança que ele carrega consigo.

1 Dezembro 2023

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