21/12/2024
A cena gravada na Rua do Benformoso não foi apenas um ato de violência contra imigrantes; foi um ato de violência contra a alma de uma nação inteira. Uma nação que há muito se orgulha de ser ponte entre mundos, mas que agora, sem pudor, ergue muros invisíveis contra aqueles que ousam existir à margem do seu conforto. Aqueles corpos encostados à parede não eram criminosos — eram espelhos. Espelhos do medo que carregamos, da nossa hipocrisia, daquilo que nos recusamos a ver: que, por mais que tentemos, não podemos fugir de quem realmente somos.
A parede onde os encostaram, à luz do dia, é um símbolo maior do que qualquer muralha alguma vez erguida. Não é preciso cimento para criar um gueto. Não é preciso um campo de concentração para desumanizar. Basta o silêncio de quem observa, a apatia de quem consente, o conformismo de quem acredita que estas coisas só acontecem aos outros. Mas, e quando esses “outros” são os teus? Quando a pele encostada à parede poderia ser a do teu filho, do teu avô, da tua irmã?
A discriminação racial não é apenas um flagelo; é um cancro espiritual que corrói o coração das sociedades. É a mentira que contamos a nós próprios para justificar o nosso privilégio, a nossa ganância, o nosso medo do diferente. E, como todas as cicatrizes mal curadas, infecciona, alastra-se, transforma-se em algo que, inevitavelmente, nos matará a todos.
No dia, 19 de dezembro, Portugal envergonhou-se. Não apenas porque falhou com quem chegou até nós com esperança, mas porque falhou a si próprio. E um dia, quando as crianças que hoje brincam nos parques crescerem, olharão para nós e perguntarão: “Como deixaram isto acontecer?” O que diremos? Que foi um erro? Que estávamos ocupados demais, distraídos demais, assustados demais para erguer a voz contra a injustiça?
E, no entanto, sabemos a verdade. Sabemos que nada, absolutamente nada, justifica tal desumanidade. Que não existe crime maior do que negar a alguém a sua humanidade. Que associar imigração a criminalidade é o mesmo que associar liberdade à servidão — uma mentira tão grotesca que deveria ser insuportável até de pronunciar.