11/04/2021
Os padrões de cultura, sejam eles simbólicos, comportamentais ou outros insinuam-se em todos os sub-sistemas da sociedade e permitem conferir sentido e coerência na maneira de viver e agir entre pessoas da mesma comunidade. Por outro lado, esses mesmos padrões de cultura desenham a ideia de fronteira cultural (muitas vezes apenas simbólica, sem território físico) e de inimigo, tendo um papel essencial na construção do mito da identidade de cada grupo étnico ou nacional. Edgar Morin diz-nos que a fronteira circunscreve a zona de integridade, de inviolabilidade. Quanto ao “inimigo” permite levantar o problema da identidade nacional (ou étnica) em termos fundamentais da vida e da morte, da existência, da liberdade. Permite ainda todas as fixações agressivas de superioridade-inferioridade.
Tais identidades culturais constroem-se em territorialidades bem mais imaginárias do que reais e legitimam-se a partir de certezas irredutíveis refutando, por vezes virulentamente, o outro diferente e, muitas vezes também, com o sacrifício de uns e o genocídio de outros.
Ora a tradição cultural colectiva ou inscrita em cada ser humano na sua egocultura é uma amálgama complexa de influências múltiplas mais ou menos retocadas ou modificadas.
Cremos que nunca existiram culturas independentes e puras. De outro modo, em nome de que valores e de que critérios podemos nós julgar da sua integridade e pureza?
Os conflitos de identidade resultantes de uma dupla pertença linguística e cultural de actores sociais em contexto multicultural são um fenómeno multidimensional cada vez mais presente nas sociedades contemporâneas abertas e as estratégias identitárias de integração/ rejeição das diferenças pelos seus actores sociais são largamente determinadas pela cultura educativa que, muitas das vezes, escapa à própria vontade dos sujeitos.
Ao Ge, ao reconhecer-se como membro de uma comunidade bilingue e bicultural (a comunidade macaense), reflecte, de modo recorrente, a conflitualidade de duas pertenças que integra na sua personalidade modal sem que consiga abrir-se à coligação entre as duas culturas (a portuguesa e a chinesa) que, apesar de tudo, também reconhece lhe pertencerem como uma só.
A temática deste conflito e das suas expressões surge topicalizada na sexualidade da personagem Ao Ge, cuja ambiguidade é espaço e simultaneamente expressão da representação que, enquanto mestiço, tem do antagonismo e tensão entre autóctones, minorias e colonizadores: o episódio do tr****ti em Paris é altamente simbólico, pois não só figura a ocorrência violenta de que a personagem é vítima na infância (a violação por parte de um português) como o desprezo pela «monstruosidade» da pertença dual (e daí a pertinência do tr****ti enquanto objecto de desejo e repulsa). Daí igualmente a obsessão de Ao Ge com o «nariz alto e recto»: a ideia de etnicidade que o atormenta incorpora também uma componente relativa aos traços fenotípicos, porquanto estes podem traduzir visibilidade e diferenciação face à maioria. Também aqui, a ambiguidade da relação com José assenta no «rosto europeu» deste versus as «feições asiáticas» do protagonista.
A comunidade macaense é uma comunidade naturalmente bilingue e bicultural. Queremos dizer com isto que o Macaense adquiriu duas culturas e duas línguas por força das circunstâncias, quer em casa, quer no meio circundante em que tem de viver, conviver e trabalhar. Poderíamos mesmo dizer que a sua socialização foi uma socialização bilingue e também bicultural.
Estas pequenas ilhas de cidadãos multiculturais de Macau foram geradas fora dos sistemas educativos de Macau porque todos os sistemas educativos de Macau são monoculturais na essência. Macau teve sempre um problema de cultura política monocultural, raramente animando projectos de representação e de diálogo inter ou transculturais.
Daí que Macau, embora com ampla pluralidade cultural e com a sua “controlável” dimensão organizacional e humana, não soube ainda construir um paradigma educativo e uma fórmula de cultura de cidadania que releve como original e institua como valor, o valor das múltiplas pertenças.
Daí também as múltiplas dificuldades de um actor bicultural e bilinguístico em reconhecer, dentro do seu corpo mas, sobretudo, dentro do seu espírito, a igualdade do valor de cada uma das culturas, bem como de estabelecer um contrato de igualdade de valor entre o seu próximo e o diferente ou aperceber-se até da dimensão estética das imagens e das visões das duas heranças culturais que transporta e cuja diversidade é a sua maior riqueza.
O que parecerá ser empírico mas nem sempre consciente no actor bicultural e bilingue é a sua plasticidade de pensar e fluir naturalmente no intercultural, por virtude de uma inteligência comunicacional inovadora, com novas dimensões de espaço e de tempo e horizontes mais vastos dos sentidos e das sensibilidades.
A aceitação do modelo intercultural deve afirmar-se no cruzamento e miscigenação culturais, sem aniquilamentos, nem imposições, numa dinâmica interactiva e relacional. Muito mais do que a simples aceitação do «outro», a verdadeira tolerância numa sociedade intercultural passa pelo acolhimento do outro e transformação de ambos com esse encontro, decorrendo daí um novo «nós» - sempre plural, mas também coeso. E é nesse sentido que caminha esta personagem, que vai evoluindo ao longo da narrativa: desde as aulas de putonghua à visita à campa da avó chinesa e à constatação de que ama Macau, a cidade onde nasceu e cresceu e na qual, finalmente, se vê em casa.
Ana Paula Paiva Dias (杜愛寧)
Rui Manuel de Sousa Rocha (羅世賢)