27/04/2019
A VIDA NO CAMPO E A SABEDORIA DO VELHO PEÃO( minha história de vida)
Mariozinho criou-se na fazenda, porque lá todos lhe agradavam e lhe contavam histórias, mormente sobre lobisomem, saci pererê, boitata, mula sem cabeça e assombrações, que em vez de lhe assustar, o fazia rir às gargalhadas.
Tio Remígio chegou de repente e vendo-o, foi logo lhe dizendo:
--Oi guri, o pessoal está maluco por causa da lua cheia, hoje deve aparecer o lobisomem.
--Mas Tio, o que faz esse bicho?
--Não é bicho guri, é homem que se transforma em cão.
--Então é bicho Tio. —falava e ria de Tio Remígio. —E o que ele faz? --perguntava com um olhar brejeiro.
---Ah... Quando a lua é cheia eles vão dançar nos campos e fazem maluquice...
--Mas não é o lobisomem Tio, esse aí é o Saci Pererê, Tio está f**ando esquecido —Mariozinho ria muito.
--É, é mesmo, faço confusão de tanta assombração por aqui.
--Nunca vi um “boitatá”, como ele é?
--Eu já vi muitas vezes, é um fenômeno que chamam também de fogo-fátuo, que são os gases inflamáveis que emanam dos pântanos, sepulturas e carcaças de grandes animais mortos. Sim, quando o gado morre e f**a em decomposição, sua gordura é levada pelo vento, correndo pelo alambrado em forma de fogo.
--E o fantasma Tio?
--Ah sim, há um lá na cacimba.
--O que ele faz lá?
--Ele protege a água, assusta as pessoas á noite. Come as criancinhas. Ninguém pode ir lá depois da meia noite.
--Eu vou lá! –gritou Mariozinho sapeca.
--Vá e depois não venha chorar no meu colo —disse Tio Remígio brabo e saindo para o galpão.
Mariozinho ficou quieto, respeitava o velho peão, via nele um amigo de convicções simples, mas profundas e admirava-o pelo amor que tinha a estância e pela sua sabedoria rústica, pela humildade, sua coragem e ousadia e também por seus conhecimentos modestos e sua profunda discrição. Ele era uma espécie de maçonaria daqueles que vivem apegados à terra e às suas duras e amargas realidades.
“Mery” a irmã que tinha 4 anos a mais que Mariozinho, tentava acalmá-lo a não confundir essas superstições locais e lia para ele histórias de João e Maria.
O patrão Dr. Camilo, que ouvira as conversas de galpão, se inclinava a não se intrometer nessa mística folclórica e entendia que eram necessárias para a mente criativa e lúdica infantil das crianças, municiando seus sonhos e fantasias.
Tio Remígio dizia isso para ele não ir, porque era muito perigoso cair dentro da cacimba, que era um poço de água nascente, muito antigo, de uns dois metros de fundura, numa boca de um metro e meio, que nunca secava e que socorria a fazenda em época de seca. Lá, a uns 300 metros das casas, perto do açude pequeno, o pessoal chegava numa p**a de 200 litros de água e a enchia puxando-a em cima de dois paus em forma de Y, com um b***o até as casas. Puxavam o b***o pelas rédeas e davam um estalido de língua e o animal já ensinado obedecia e devagar seguia pela estrada que antes cheia de capim começava a rarear grama onde a p**a era arrastada e já no fim de algumas semanas só se via terra e alguma poeira que se formava.
--Tio Remígio é verdade que Dona Bicuda cura verruga?—perguntou Mariozinho com olhar maroto.
--Não brinque com isso guri, chamas ela de “bicuda” porque tem os dentes pra frente não é? Mas ela tem poderes e essa simpatia ela carrega no peito desde rapariga que a velha avó lhe deu. Aquele saquinho roxo cura verrugas sim.
--Mas papai disse que vai tirar essas verrugas de minha mão.
--Talvez o doutor tire, mas também pode nascer outra vez. O que tu precisa Mariozinho é do saquinho roxo da comadre Anastácia a “bicuda” como dizes.
--Saquinho roxo! --ele levantou o dedo ao longo do nariz, fechando um olho.
--É o que senhor chama de cura pela simpatia, e o que é simpatia tio?
--É uma reza que ela faz, então o anjo da guarda dela entra em contato com o santo que a protege e ele faz realizar o que ela pede —Tio Remígio não sabia explicar bem.
--Essa é a explicação então? –perguntou o guri. Ele queria uma explicação e na realidade nunca vira nada que explicasse.
--Não, não é a explicação, porque simpatia não tem explicação e vamos parar com esse interrogatório guri—embrabeceu o velho peão.
Tio Remígio gostava de ensinar Mariozinho e como o assunto estava além de sua sabedoria ele desviava para outro, olhando para cima, apontou:
--Está vendo aquele céu azul? Aquele céu azul é o céu onde está Deus, que mora lá em cima naquela vastidão azul. Veja como Ele está longe e como o Céu está longe e agora olhe para baixo e veja a terra, e veja como ela está perto e como nos é fiel. Está vendo esses campos com pequenas flores a cobri-lo? Está vendo como o gado se alimenta desses capins e da fartura das lavouras de milho e azevém? Pois bem, tudo isso é porque Deus é bom e Ele nos deu a velha Mãe Terra que é nossa amiga e nos alimenta. Mas ele mora lá no céu para não ser incomodado...
Tio Remígio notou que a percepção do guri tinha se tornado mais aguda, talvez por ter aprendido a arte de substituir uma coisa por outra e o que representa a lei das compensações posta em prática de uma maneira um tanto sóbria e ele tinha de fazer uma série de ajustes nas suas explicações.
--Então a terra é que nos dá tudo Tio?
--É isso mesmo. Teremos uma generosa colheita de milho e alimento para o gado do patrão, nascerão lindos terneirinhos que logo serão gado gordo e a safra vai ser grande e bonita dando trabalho para a peonada da fazenda.
As ovelhas estarão bem gordas e com muita lã na entrada do verão para a tosquia que dá muita mão de obra e enche os bolsos das famílias de dinheiro.
Enquanto Tio Remígio falava, Mariozinho f**ava escutando-o com muita atenção e fazia cada pergunta que assustava o velho peão.
--E como a lã cresce na ovelha Tio?
Ele olhou para o guri como se ele fosse um bicho estranho e respondeu:
--Nunca ouvi ninguém perguntar isso. Mas elas crescem assim como nossos cabelos crescem ora! Depois de tosquiada a ovelha vai para o campo e começa a crescer a lã novamente e essa lã ai vai para os lanifícios e se transforma em casacos quentes, cobertores e roupas para a gente vestir.
--Então só os animais produzem roupas para a gente?
--Não guri, o bicho da seda produz a roupa de seda onde se faz os lenços que usamos no pescoço e que a faca não corta. Também fazem camisas e roupas femininas.
--Então as roupas são feitas de bichos como ovelha, e esse bicho da seda?
--Não guri, também das plantas, como o algodão que tu conhece e que faz roupas quentes para o inverno e por exemplo, o linho. O linho vem da linhaça que também serve para a ração do gado.
Mariozinho f**ava quieto enquanto digeria aquelas informações, ele apertava o lábio pensativo. Olhava para os passarinhos que passavam em grupo e logo fazia outra pergunta:
--Tio as superstições, o que são?
--Vou te responder o que teu pai me disse um dia: “A superstição é apenas uma condição da matéria sobre o espírito”. Matéria é nosso corpo. Eu sou um velho tolo e não vejo as coisas muito claras, mas a peonada acredita que não se deve deixar chapéu encima da cama, que espelho quebrado tem que ser jogado fora e trás mau augúrio.
--Tem outras? —perguntou Mariozinho muito interessado.
--Sim, existem muitas. Pisar em sapo traz chuva; vento entrando pela chaminé signif**a complicações futuras; o pio da coruja, trás morte ou desastre e assim por diante.
Mariozinho continuava andando ao lado do velho peão e olhando ao longe os campos pujantes da fazenda Santa Cecília.
--Tio Remígio, eu não gosto da cidade, a luz da cidade é menos viva, é mais cinzenta, menos definida, o senhor me entende?
--Claro guri, tu nasceu para o campo, Deus queria que fosse um dos nossos, mas precisas estudar na cidade aqui não tem escola.
--Aqui é bem diferente, tudo tem um sentido, uma explicação e os dias são mais bonitos, radiantes. Olho para as colinas, para os campos, para o rebanho e os cavalos e tudo me parece que há mais vida, mais cores. Se eu fosse pintor adoraria pintar a natureza, como são belas essas paisagens!
Acordara pela manhã com o canto do passarinho. Era aquele canarinho amarelo que morava ali na árvore do lado da janela do seu quarto de dormir, mas nesse dia sentiu vontade de lhe torcer o pescoço, pois ainda não eram seis horas e ele já estava ouvindo essa cantarola frenética.
Logo chegaria março, quando começariam as aulas na cidade e o passarinho f**aria ali cantando junto de outros cuidando seu ninho para fugir do inverno que sempre vinha acompanhado do vento minuano que cortava a pele das pessoas de tanto frio. Mas certamente no próximo verão o canário amarelo ali estaria novamente cantando, mostrando que a vida é sábia, boa e alegre.
Dona Zoraide, mãe de Mariozinho costumava chamar isso o Eterno Retorno, referindo-se ao filósofo alemão Nietzsche,
pensando no retrospecto de nove meses atrás a partir daquele dia, o bichinho estaria ali novamente de retoço com outros iguais.
Durante o longo verão a sua melodia alegre parecia indicar realização e promessa de uma profunda felicidade, quando se viam satisfeitos os nossos mais caros desejos. ----“Felicidade, realização”—pensava --Se aquilo era promessa, tudo se cumpria de forma bem estranha, difícil de uma criança entender, mas para os mais velhos esse repetição era a coisa mais normal da vida.
O casarão da fazenda, dizem, tinha mais de duzentos anos. Uns 120 anos só na mão dos Mércios e era uma ruína abandonada quando em 1915 Dr.Camillo herdou definitivamente essa fazenda do pai falecido e promoveu uma reforma total, mantendo a fachada antiga como outrora sempre fora. Ele estava sempre falando da fortuna que gastou para restaurá-la e tinha muita satisfação vendo seu sonho concretizado. Para Dr. Camilo a casa signif**ava o grande movimento de retorno à terra, ao gado, cavalos e as lavouras, depois de tantos anos no Rio de Janeiro, em Lion ou em Paris, estudando e se especializando. Ele costumava dizer que passaria de ratinho da cidade a ratinho do campo, no que sua filha mais nova Marthinha sempre censurava: ”Eu não sou rato não papai”---ele só ria da filhinha.
--Agora sou dono de meu nariz e assim que terminar a partilha, receberei mais três fazendas, a mais perto f**a em Umbú, distrito de Cacequi, é uma bela estância com 50 quadras de sesmaria, quase a metade de Santa Cecília e lá passa um rio, como aqui –completou o doutor para ele mesmo, em pensamento.