23/06/2021
Cortinas (Rudi Caldeira)
Com dificuldades ele conseguiu chegar ao topo daquele morro em que um dia trocara juras de amor, ele precisava estar ali naquele momento. Durante toda a subida não lhe saía da cabeça os momentos que antecederam a partida de sua fiel companheira, os momentos de angústia, o sofrimento que julgara tão injusto e desnecessário, os pedidos que ouviu sem ter como prometer cumprir, pois não queria transparecer que aceitara o inevitável. Sabia que não tardaria sua despedida deste mundo também, mas nunca desejara ser quem selasse o término do relacionamento com a morte inevitável de um dos dois, na verdade sempre orara para que fosse ao contrário. Sentado, envolto em seus pensamentos, observando a cidade onde as luzes, aos poucos, começavam a se acender, sob um colorido alaranjado que parecia pintado no céu, como se feito para recepcionar sua fiel amiga, como se dignificando aquela extraordinária existência.
Acreditavam que a vida de cada pessoa era uma história individual que se contada em uma mesma época, com personagens vivendo uma trama em comum, esta vida poderia ser um conto coletivo e foi assim que viveram esta fábula. Se conheceram ainda jovens tratando de buscar a sobrevivência através do trabalho, sem perceber estavam diariamente em contato, mesmas atribuições, confidências em um jornal popular sensacionalista, em busca de notícias que alimentassem as rodas de conversas desde o botequim até as salas de jantar. Ele jornalista, ela estagiária, ambos muito profissionais. Começaram a cursar teatro buscando apenas se aprimorar em expressões corporais, pensavam que ajudaria, de alguma maneira, em sua apresentação na busca pela notícia. Acabaram por se apaixonar pelo teatro ao mesmo tempo em que se apaixonavam um pelo outro, já não conseguiam armar uma nova atribuição onde não se imaginassem juntos, quase sem notar estavam ligados sem qualquer laço, não era mais apenas amizade, faltava a iniciativa... e ela veio. Ao término de uma entrevista que foram cobrir em um estúdio de televisão que ficava no morro das antenas, sentaram-se no pátio da emissora, ao fundo do prédio, onde era possível ter a vista deslumbrante de quase toda a cidade. Então ele suspirou, pegou em sua mão e disse não conseguir mais viver longe dela. Ela chorou. Abraçaram-se sentindo seus corpos tremerem em espasmos incontroláveis e entre carícias se beijaram loucamente. Era amor. Foram expulsos juntos de seu jornal, era inadmissível tal comportamento. A Vida que segue.
Noite. Agora todas aquelas luzes embaçadas diante de seus olhos marejados, cada uma iluminando uma história. Pensou em como fora difícil e gratificante. Seguiu lembrando que com o que conseguira de sua rescisão montaram um forte, assim denominaram o apartamento alugado na periferia, onde passaram a viver juntos, junto a dificuldade que não os abatia. Durante os sanguinários anos sessenta foram convidados a participar de uma peça de teatro que contava a história de um casal que fora exilado, peça esta que se passava em pequenos porões, escondidos de militares conseguiram arrecadar sua sobrevivência através de doações que vinham ao final de cada espetáculo. Sem perceber modificaram suas vidas, unificando-as, e como se em uma peça teatral sem nenhum clown, moldaram personagens novos ao novo que se apresentava. Estavam jogando e não pretendiam perder, do que ganhavam tinham direito a comer, mas passaram a ficar conhecidos pelo mundo escondido do teatro amador de uma época insana.
Silêncio. Foram 8 meses sem trocar uma palavra, a saudade e a incerteza tomou conta de ambos... em uma noite, após passar em um mercado, ele fora preso ao chegar em casa, as forças armadas invadiram sua residência, reviraram tudo atrás de algo que jamais soube identificar, quebraram seus poucos pertences, não deixaram nada em seu lugar, durante aqueles minutos ele pensou: tomara que ela não chegue. Ela ao perceber a movimentação em frente ao prédio onde moravam não se aproximou e ele agradeceu ao sair algemado e colocado em um camburão... ela não chegou. Ele estava sozinho. Ficaram assim, durante este tempo, sem notícias, sem afeto, quase sem esperanças, uma dor incalculável em cada coração, como mais tarde ele definira para seus filhos... resistiram a tudo apesar do tempo e da dor.
Neste instante, aquele homem cansado, deitou-se no chão e passou a olhar em direção às estrelas, não que as admirasse, na verdade não percebeu sequer uma estrela cadente passar diante de seus olhos, trazia consigo a lembrança de um dos momentos mais felizes de sua existência, do dia que para ele fora um marco de crença, uma crença que jamais definira e aceitara em qualquer religião, parecia-lhe ainda maior do que elas o tentavam mostrar, era a crença no amor verdadeiro, em seus sentimentos e sentidos, no que queria e pelo qual, naquele momento, firmou como motivo e objetivo para seguir até o final de seu tempo. Ele era um homem livre e um homem apaixonado pela sua vida e isto ninguém jamais poderia lhe tirar. Ela reorganizara sua casa, após um período de segurança, revelara seus retratos e os posicionara estrategicamente em cada peça onde os pudesse ver. Apesar de por vezes vacilar, acreditava que um dia ele voltaria a entrar por aquela porta. Entregou-se ao trabalho que conseguira com uma amiga, primeiro como assistente de produção, depois, com muito empenho, passou a coordenar a companhia teatral desta mesma amiga, sempre cultivando o seu sonho de amor, mesmo sem qualquer notícia, cultivando seu sonho de amor... Valeu a pena, um novo mundo se abriu para ambos e estavam determinados a fazer deste mundo, o melhor mundo em sua existência.
Felicidade. Dois anos após aquele acontecimento nascia seu primeiro filho, e mais dois anos depois a primeira filha. Formaram um quarteto invejável, tudo crescia em suas vidas, desde as crianças até sua posição econômica. Naquele momento apenas desejavam que o tempo deslizasse por seus dias, assim, exatamente como vinha acontecendo e assim foi, ano após ano, sonho após sonho. Conquistaram sua casa própria, esbanjavam saúde, sempre unidos, sempre correndo pelas linhas objetivadas e determinadas por eles para terem uma posição confortável em um futuro inevitável. Seus filhos casaram, deste casamento vieram três netos... Voltaram a morar sozinhos, mas jamais se quedaram abandonados, a educação bem assistida dera resultado e sua família se mantivera sempre unida.
Paz. Como conseguira visualizar sua própria história, uma vida longa, inteira, em apenas uma noite, pensou. Não tinha mais forças e nem desejava se levantar daquela grama úmida. Assistia naquele momento, uma a uma, as estrelas desaparecerem no céu. Infinita é a existência do todo, mas desfragmentadas as vidas são tão frágeis. Um cinza cada vez mais claro foi lhe cegando aos poucos, sentiu que algumas pesadas gotas começaram a bater em seu rosto, em fração de segundos já não sabia mais distinguir o que eram lágrimas e o que era chuva, então se permitiu chorar silenciosamente. Cada sensação lhe dava a certeza de que havia passado trotando pela vida, que não era um momento de martírio, era a realização da peça, seu final estava, neste momento, se desenrolando conforme sempre fora planejado, mas nunca orquestrado... percebeu que nunca estivera só, mesmo sozinho, sempre se manteve em algum pensamento e isto lhe trouxe a paz, uma paz absoluta, uma paz derradeira.
A dor sentida é uma dor contida e anestesiada pela reflexão do que viveu. Aquela pontada aguda, não foi um fechar de cortinas para o término de um espetáculo, mas um despertar para uma nova peça que não se sabe bem ao certo onde, nem quando estreará.