07/08/2023
O meu encontro com Caetano Veloso em Recife
Aroldo Pedrosa
Eu havia escrito letra sobre um patrimônio da cultura brasileira nordestina: Lia de Itamaracá – a compositora/cantora de cirandas, cirandas que embalaram meus sonhos de juventude e inspiraram o nome de minha filha Ciranda, que, quando criança, dançava na floresta com leveza de fada. "Esta ciranda quem me deu foi Lia / Que mora na ilha de Itamaracá..." Os sonhos, embalados especialmente por esses versos, eram como disse “de juventude” – "Menino Deus / Quando a flor do teu s**o / Abrir as pétalas para o Universo..." –, porque me levavam, espetacularmente, à ilha afrodisíaca de Lia. E a letra, já em pleno século 21, me veio assim nas asas dessas lembranças.
Muito depois, em 8 de junho de 2003, conheci a musa ao vir cantar no Amapá pelo projeto Sonora Brasil. Nos encontramos e contei a ela o que agora escrevo aos leitores de Vanguarda.
E então, o músico e parceiro Matheus Farro pegou a letra de "Lia" e musicou. Fez um jazz sofisticadíssimo, e o Israel Cardoso – outro bom músico amapaense – criou o arranjo. Imediatamente inscrevi a canção no Festival de Música de Garanhuns, classif**ando-a. E fomos os três à cidade pernambucana onde nasceu o sanfoneiro Dominguinhos e o presidente Luís Inácio Lula da Silva.
O resultado do festival – pelo menos pra nossa música – não foi grande coisa. Em compensação a volta por Recife...
Caetano estava em turnê pelo Brasil com o show Cê e se apresentava em Recife, justamente na noite de minha passagem por lá. Matheus e Israel, desinteressados, preferiram o retorno a Macapá.
Era 1º de maio de 2007.
Com pouca grana e pra não correr o risco de perder o show, hospedei-me estrategicamente numa pousada em frente ao Teatro Guararapes, quando, minutos antes do show, desabou sobre a cidade tremendo temporal. Fui socorrido por um transeunte que passava com um enorme guarda-chuva colorido me levando até a porta do teatro. Graças ao anjo alado com asas de guarda-chuva, pude chegar no horário e ver Caetano cantar para uma plateia delirante “Não me arrependo”, “Minhas lágrimas”, “Musa híbrida”, “Um sonho”, “O herói”, “Homem”, “Rocks”, “Odeio” – as canções minimalistas que estão no CD que deu nome ao show. Um Caetano grisalho, mas mais menino do que nunca, meio roqueiro, acompanhado pelos jovens músicos Pedro Sá (guitarra), Ricardo Dias Gomes (baixo e piano rhodes) e Marcelo Callado (bateria). De calça jeans, tênis, camisa pólo cinza e jaqueta índigo blues desbotada, o doce bárbaro baiano sacudia o Guararapes, correndo de um lado a outro do palco, cantando o frevo “Chão da praça”, de Moraes Moreira e Fausto Nilo. Sambas, também, solados, no lugar do cavaquinho, pela guitarra elétrica de Pedro Sá. Canções do Transa – o ótimo disco do exílio londrino – que os meninos da banda são fãs e tão bem entrelaçadas com as composições da nova fase do artista. “Nine out of ten”, que tem na letra o verso “Caminhando pela rua Portobello ao som do reggae” – reduto e berço, em Londres 70, do ritmo jamaicano que veio a se espalhar pelo mundo –, Caetano dedicava aos músicos do disco Transa – Jard’s Macalé, Tutti Moreno, Áureo de Souza e à memória de Moacyr Albuquerque. Em seguida cantava “Um tom”, do disco Livro, feita em homenagem ao filho caçula Tom, nascido na mesma data do maestro soberano Antonio Carlos Jobim. A canção era dedicada a outro grande maestro: Jacques Morelenbaum. No palco, Caetano, homem cordial, mais que artista e humano, com inveja apenas da longevidade e dos or****os múltiplos.
De repente num banquinho mandou ver o clássico “A voz do violão” (Francisco Alves / Horácio Campos) em resposta a alguém que escrevera para o blog do jornalista Jorge Bastos Moreno, comentando entrevista polêmica do compositor publicada ali: “Vocês todos têm razão, ninguém aguenta mais ouvir Caetano Veloso falando sobre tudo. Mas o pior é ter que aguentar ele tocando violão”. A citação, em ipsis litteris, arrancou aplausos e risos da plateia.
E o show terminou com Caetano cantando a saudosista “Descobri que sou um anjo”, de Jorge Ben. As palavras meio que faladas no timbre super-bacana do cantor:
"Não, comigo não
Comigo nunca mais
Mantenha a distância quando eu voltar
Pois na minha ida
O meu caminho era todo de pedras e espinhos
Mas na minha volta
Ele vai ser todo de estrelas e rosas..."
Enfim, duas horas de música popular brasileira contemporânea da melhor qualidade. Um show e tanto!
Terminado o espetáculo, procurei o caminho que me levasse ao camarim do teatro. Havia muitas pessoas ávidas por uma palavrinha ou uma fotografia ao lado do ídolo. Vi quarentões, cinqüentões, sessentões e adolescentes se derramando nos braços do amado e idolatrado artista. Esperei por todo mundo e, quando não havia mais ninguém, me aproximei e cumprimentei Caetano. Falei de Macapá, do Navegar Amazônia e da revista Vanguarda que estava de aniversário naquela noite. Levei comigo as três últimas edições, com as quais presenteei Caetano. Ele ficou impressionado com a imagem da Maracatu da Favela na capa da edição nº 12 e disse saber do Navegar Amazônia pelo Jorge Mautner. Falei que fui agente cultural do projeto e que na expedição de Abaetetuba estivera com Mautner. Revelei ainda o sonho de entrevistá-lo para a revista, perguntando-lhe se seria possível. Caetano disse que sim. Apresentou-me o produtor Franklin que, imediatamente, me passou telefone e e-mail para contato. Agradecido pela atenção, deixei o camarim numa felicidade de quem marcou o gol mais lindo do mundo em partida final de campeonato.
Foi assim o meu encontro, em Recife, com esse homem cordial chamado Caetano Veloso.
Acreditava que o ciclo havia se encerrado ali, que o movimento aliado dos astros tinha cumprido o seu ofício. Que nada! A viagem de volta me trouxe no mesmo voo em que viajava o músico Pedro Sá – Caetano tinha show em Belém no dia seguinte.