08/03/2023
Nesse dia 8 de março a Revista Arcádia presta sua homenagem a todas as mulheres lembrando algumas daquelas que enriqueceram o mundo por meio da poesia.
A Ondina – Francisca Júlia
Rente ao mar que soluça e lambe a praia, a Ondina,
Solto, às brisas da noite, o áureo cabelo, nua,
Pela praia passeia. A opálica neblina
Tem reflexos de prata à refração da lua.
Uma velha goleta encalhada, a bolina
Rota, pompeia no ar a vela, que flutua.
E, de onda em onda, o mar, soluçando em surdina,
Empola-se espumante, à praia vem, recua...
E, surdindo da treva, um monstro negro, fito
O olhar na Ondina, avança, embargando-lhe o passo...
Ela tenta fugir, sufoca o choro, o grito...
Mas o mar, que, espreitando-a, as ondas avoluma,
Roja-se aos pés da Ondina e esconde-a no regaço,
Envolvendo-lhe o corpo em turbilhões de espuma.
O beija-flor – Auta de Souza
Acostumei-me a vê-lo todo o dia
De manhãzinha, alegre e prazenteiro,
Beijando as brancas flores de um canteiro
No meu jardim - a pátria da ambrosia.
Pequeno e lindo, só me parecia
Que era da noite o sonho derradeiro...
Vinha trazer às rosas o primeiro
Beijo do Sol, n’essa manhã tão fria!
Um dia, foi-se e não voltou... Mas, quando
A suspirar, me ponho contemplando,
Sombria e triste, o meu jardim risonho...
Digo, a pensar no tempo já passado;
Talvez, ó coração amargurado,
Aquele beija-flor fosse o teu sonho!
Ser mulher – Gilka Machado
Ser mulher, vir à luz trazendo a alma talhada
para os gozos da vida: a liberdade e o amor;
tentar da glória a etérea e altívola escalada,
na eterna aspiração de um sonho superior...
Ser mulher, desejar outra alma pura e alada
para poder, com ela, o infinito transpor;
sentir a vida triste, insípida, isolada,
buscar um companheiro e encontrar um senhor.
Ser mulher, calcular todo o infinito curto
para a larga expansão do desejado surto,
no ascenso espiritual aos perfeitos ideais.
Ser mulher e, oh! atroz, tantálica tristeza!
f**ar na vida qual uma águia inerte, presa
nos pesados grilhões dos preceitos sociais!
Timidez – Cecília Meireles
Basta-me um pequeno gesto,
feito de longe e de leve,
para que venhas comigo
e eu para sempre te leve…
- mas só esse eu não farei.
Uma palavra caída
das montanhas dos instantes
desmancha todos os mares
e une as terras mais distantes…
- palavra que não direi.
Para que tu me adivinhes,
entre os ventos taciturnos,
apago meus pensamentos,
ponho vestidos noturnos,
- que amargamente inventei.
E, enquanto não me descobres,
os mundos vão navegando
nos ares certos do tempo,
até não se sabe quando…
e um dia me acabarei.
Amavisse – Hilda Hilst
Como se te perdesse, assim te quero.
Como se não te visse (favas douradas
Sob um amarelo) assim te apreendo brusco
Inamovível, e te respiro inteiro
Um arco-íris de ar em águas profundas.
Como se tudo o mais me permitisses,
A mim me fotografo nuns portões de ferro
Ocres, altos, e eu mesma diluída e mínima
No dissoluto de toda despedida.
Como se te perdesse nos trens, nas estações
Ou contornando um círculo de águas
Removente ave, assim te somo a mim:
De redes e de anseios inundada.
Recordar é preciso – Conceição Evaristo
O mar vagueia onduloso sob os meus pensamentos.
A memória bravia lança o leme:
Recordar é preciso.
O movimento de vaivém nas águas-lembranças
dos meus marejados olhos transborda-me a vida,
salgando-me o rosto e o gosto.
Sou eternamente náufraga.
Mas os fundos oceanos não me amedrontam nem me imobilizam.
Uma paixão profunda é a boia que me emerge.
Sei que o mistério subsiste além das águas.